Crise

Realizado três anos depois do pioneiro “Primárias“, documentário que deu origem ao chamado “cinema direto”, “Crise” faz parte de uma série de nove especiais de uma hora de duração encomendados ao cineasta e jornalista Robert Drew pela rede ABC News. O filme se tornou mais um marco na carreira do diretor por ter sido o primeiro a acompanhar, de dentro da Casa Branca, os bastidores de uma crise política.

A crise em questão não teve proporções gigantescas como a de Watergate nem alcançou escalas internacionais como a da Guerra do Vietnã (que também se tornariam temas de documentários de Drew anos mais tarde). O filme gira em torno de um problema mais doméstico, ocorrido em 1963 no estado do Alabama, o único que ainda adotava o sistema de segregação racial em sua principal universidade. O governador George Wallace tentou impedir que dois alunos negros se matriculassem nos cursos de verão daquele ano, atitude esta que obrigou o presidente John F. Kennedy (filmado aqui cinco meses antes de ser assassinado) a intervir antes que algo mais grave acontecesse.
Drew utilizou duas equipes principais de filmagem: a primeira ficou em Washington para acompanhar as reuniões de JFK com seus assessores e seguir cada passo de Robert Kennedy, então procurador geral do Estado, que tentava encontrar uma solução para o caso sem precisar recorrer a uma medida mais drástica. A segunda equipe foi ao Alabama atrás de Wallace, que prometia se colocar pessoalmente na porta da universidade para barrar a entrada dos dois alunos. Lá, os cinegrafistas (entre eles Richard Leacock e D.A. Pennebaker) ainda se subdividiram para ficar perto de Nicholas Katzenbach, procurador adjunto de Robert Kennedy enviado ao local para negociar frente-a-frente com Wallace; e, claro, dos dois jovens que reivindicavam o direito de se instruírem no estado em que nasceram.
“Crise” demonstra uma clara evolução na linguagem do cinema direto em relação a “Primárias”: a montagem cria uma narrativa mais redonda, interligando os fatos ocorridos em Washington e no Alabama com uma precisão digna de uma narração ficcional. Há de se levar em conta que a equipe de Drew em Washington não sabia o que a equipe no Alabama estava filmando. Não fosse o instinto e a atenção dos cinegrafistas para filmar os detalhes e o inusitado, seria impossível a criação de uma cena como aquela em que a filha de quatro anos de idade de Robert Kennedy toma o telefone da mão do pai e entra no meio de uma importante conversa que ele tinha com Katzenbach. A menina serve praticamente como um alívio cômico, só que real: aquela situação aconteceu, por mais que pareça uma invenção inverossímil de um roteirista.
O método de filmagem criado por Drew e seus colegas também mostra avanços. Fazendo uso pleno de suas câmeras leves, eles não se constrangem, por exemplo, de entrar junto com Wallace em seu automóvel. E se em “Primárias” há o cochilo de Hubert Humphrey dentro do veículo, aqui há uma declaração lunática do governador, que tenta justificar seu próprio racismo. A equipe também faz questão de filmar momentos íntimos dos políticos, como o café da manhã da família de Robert Kennedy e JFK roendo as unhas durante uma reunião. São momentos simples e aparentemente desnecessários, mas que adicionam camadas aos personagens – o que colabora na formação do processo narrativo.
Por outro lado, “Crise” sofre de um problema crônico: a utilização de um locutor (provavelmente, uma imposição da rede de TV) dá ao filme um aspecto mais didático do que o ideal dentro da proposta do cinema direto. Não é que a locução surja para dizer o óbvio ao espectador: quando Robert Kennedy está indeciso sobre qual dos diversos telefones em sua mesa deve atender primeiro, não ouvimos algo do tipo: “Kennedy está indeciso.” O exercício da observação continua sendo fundamental. Mas o filme é pasteurizado quando vemos Kennedy ao telefone e o locutor diz: “Uma ligação para o presidente.” Mais tarde, ele repete: “Mais uma ligação para o presidente.” E perto do fim: “Uma última ligação para o presidente.” Não são informações óbvias, já que não temos como saber para quem ele está telefonando, mas elas são dadas com objetivo puro e simples de explicar a cena para quem assiste.
Tal como “Primárias”, “Crise” não é um documentário de qualidades indiscutíveis, mas é uma parte importante tanto da extensa filmografia de Drew quanto da história do cinema documental. Sobressai-se, entretanto, no que diz respeito à importância histórica e política do que nele ficou registrado.
Crise (Crisis: Behind a Presidential Commitment, 1963, EUA). Direção de Robert Drew. Com John F. Kennedy, Robert Kennedy, George Wallace, Vivian Malone.
O DVD
Título sete da Coleção VideoFilmes, “Crise” é apresentado em tela cheia, razão de aspecto 1.33:1, já que foi realizado originalmente para a televisão. A imagem traz claras marcas deixadas pelo tempo, mas, embora não tenha passado por um processo refinado de restauração, sua qualidade não chega a atrapalhar. O áudio está disponível em uma faixa em inglês, Dolby Digital 2.0, com legendas em português.
Os extras são poucos, mas valiosos. O principal é a faixa de comentários com o diretor Robert Drew e o cinegrafista e fotógrafo Richard Leacock. Assim como no DVD de “Primárias”, os dois fornecem diversas informações sobre as filmagens e, como dois senhores relembrando as aventuras da mocidade, contam como conseguiram permissão para filmar dentro Casa Branca e entrar na casa de George Wallace. Leacock, por exemplo, relembra que na primeira vez que teve contato com o governador, ele convidou a equipe de filmagem para tomar café da manhã, mas exigiu que as câmeras fossem guardadas e trancadas num armário.
Outro extra que merece destaque é o curta “Rostos de Novembro”, feito por Drew no dia do funeral de John F. Kennedy. É um filme minimalista, no qual o diretor filma o luto da cidade de Washington pela morte do presidente e os rostos de várias pessoas (de membros da família a cidadãos e soldados que escoltavam o caixão) durante o velório e o enterro. O curta não possui uma fala sequer, somente imagens e a marcha fúnebre servindo como trilha sonora. O início e o fim são marcados pelo som de salvas de tiros (que podem representar tanto os disparos que tiraram a vida de JFK quanto a homenagem militar no enterro). O curta de certa forma também é uma despedida pessoal de Drew ao presidente, fechando uma “trilogia” na qual ele o acompanha nas eleições (“Primárias”), no poder (“Crise”) e no trágico fim de seu mandato.
Completando os extras do DVD, estão, em texto, a filmografia completa de Drew e uma lista dos principais prêmios que ele recebeu.