The Spirit – O Filme

Frank Miller: gênio ou palhaço?

Esta é a pergunta que se faz após “The Spirit – O Filme”, primeiro longa que o célebre quadrinhista dirige sozinho após sua estréia como cineasta ao lado de Robert Rodriguez em “Sin City – A Cidade do Pecado”. A resposta pode ser uma ou outra, ou mesmo as duas coisas. Só não há como ficar indiferente ao incrível filme que ele fez – e talvez mais inacreditável ainda seja o fato de ele ter conseguido colocá-lo em cartaz.



“The Spirit” é uma aberração dentro do conjunto em que está inserido: adaptações de quadrinhos e histórias de super-heróis. Baseado no clássico detetive de terno, chapéu e gravata (e máscara, claro) criado por Will Eisner nos anos 40, o filme se revela um comentário satírico sobre esses personagens com superpoderes que precisam combater grandes vilões e seus planos malignos. E o lançamento acontece bem próximo de outro trabalho revisionista do gênero, “Watchmen” – tendência, aliás, que se fundamentou em “Batman – O Cavaleiro das Trevas” e teve também em “Hancock” o questionamento sobre o papel do herói na sociedade. Quando Lois Lane escreveu “Por que o mundo não precisa do Superman”, em “Superman – O Retorno”, a repórter do Planeta Diário mal imaginava que havia derrubado apenas a primeira peça do dominó…

Esse efeito revisionista é uma evolução natural e repete, no cinema, o que também aconteceu nos quadrinhos. Mas diferente da análise mais calcada na realidade que “Cavaleiro das Trevas” e “Watchmen” fazem, “The Spirit” pega uma veia muito mais cômica – quiçá mais apropriada, uma vez que se aproxima mais do espírito original com que as comics foram criadas décadas atrás. Algumas coisas no filme realmente parecerem despropositadas e gratuitas a princípio (como uma referência à animação japonesa que surge subitamente, ou o uso de um dinossauro de brinquedo numa cena que se passa em uma praia). Mas a impressão geral que se tem é que Miller está parodiando clichês de histórias de super-heróis, a todo momento fazendo menções a outros personagens clássicos, como Superman (“Você vai acreditar que um homem não pode voar.”), Batman, Wolverine, Thor e até mesmo os habitantes de Basin City criados pelo próprio Miller. E para fazer isso ele se distancia totalmente da fidelidade ao material original – para o bem.

O tom é de escárnio, um humor pateta e estridente. É uma histeria que beira o ridículo, mas num nível consciente. Tudo acontece bem longe do realismo que desde o primeiro “X-Men”, em 2000, tem pautado as adaptações de HQs. O “Spirit” de Miller nos faz lembrar que todos esses filmes, no fundo, têm origem nas mais absurdas fantasias de quadrinhistas que batizaram toda uma geração de geeks (e não me excluo, não).

Miller também brinca com as noções do noir que ele mesmo já explorou em “Sin City”. Em parceria com o diretor de fotografia Bill Pope (escolha muito adequada, já que trabalhou na trilogia “Matrix” e nos dois últimos “Homem-Aranha”), ele volta a utilizar o mesmo estilo gráfico expressionista, com muitas sombras, traços poligonais e cores contrastantes. E as imagens que ele cria… Deus! Há uma sequência de sonho do protagonista com suas mulheres que é absolutamente hipnotizante. Não se vê um trabalho de recortes e montagens de imagens como esse em um filme todo dia, nem no circuito alternativo, quanto menos no comercial. Miller, como mestre que é do traço, parece trabalhar na tela como se desenhasse. É um dos usos mais criativos e inteligentes de tela verde já vistos.

Por falar em tela verde, não é a toa que o elenco parece estar atuando numa peça de teatro, já que foi assim que eles foram dirigidos no set, que não contou com cenários ou locações. Por incrível que pareça, fui remetido a “Dogville” em certos momentos, já que existe um tom artificial evidente, e certamente proposital, nas interpretações. Tudo isso colabora para o efeito cômico que gera cenas engraçadíssimas, principalmente as protagonizadas por Samuel L. Jackson, que entra para valer na brincadeira. Que outro ator gritaria uma frase tão tacanha como: “I don’t like eggs on my face!”, tão bem? E a relação dele com seu exército de clones imbecis (todos vividos por Louis Lombardi) é impagável.

O delirante “The Spirit” não agrada a todos, e creio que nem seja esse seu objetivo (afinal, o próprio Will Eisner vivia mudando o tom de seus quadrinhos para evitar se acomodar junto aos leitores). Bizarrice que é, o filme se torna atraente demais para ser ignorado nas águas de um mar cuja maré parece estar ficando cada vez mais mansa.

nota: 7/10 — vale o ingresso

The Spirit – O Filme (The Spirit, 2008, EUA)
direção: Frank Miller; roteiro: Frank Miller (baseado nos quadrinhos criados por Will Eisner); fotografia: Bill Pope; montagem: Gregory Nussbaum; música: David Newman; produção: Deborah Del Prete, Gigi Pritzker, Michael E. Uslan; com: Gabriel Macht, Samuel L. Jackson, Eva Mendes, Scarlett Johansson, Sarah Paulson, Jaime King, Paz Vega, Louis Lombardi; estúdio: Lionsgate, Odd Lot Entertainment; distribuição: Sony Pictures. 108 min