“Batman vs. Superman” ou “o Povo Contra o Homem de Aço”

[Esta crítica traz detalhes de cenas do filme que podem ser considerados spoilers.]

Em “Kill Bill: Volume 2”, Quentin Tarantino escreveu um monólogo em que Bill, personagem de David Carradine, usa o Superman como metáfora para confrontar a Noiva, vivida por Uma Thurman. É uma fala muito bem escrita (e interpretada) que, em resumo, explica que Clark Kent é o alter ego do Superman, e não o contrário. Um trecho: “Clark Kent é como o Superman nos enxerga. E quais são as características do Clark Kent? Ele é fraco. Ele é inseguro. Ele é um covarde. Clark Kent é a crítica do Superman a toda a raça humana”. Embora eu admire muito e concorde com o ponto de vista de Tarantino, eu tenho que discordar da afirmação de que Clark Kent é um covarde. Pelo menos, não o Clark Kent de “O Homem de Aço” e, principalmente, o deste “Batman vs. Superman: A Origem da Justiça”. Este Clark não é de forma alguma um covarde. Ele quer apenas ser uma pessoa comum.

Como diz Elliot S! Maggin, um dos principais escritores de histórias do Superman na DC Comics, em seu ainda atual prefácio de “Reino do Amanhã”, escrito em 1997, “histórias de super-heróis — sejam em quadrinhos ou qualquer outra mídia — são hoje a manifestação mais coerente do inconsciente popular. São histórias não sobre deuses, mas sobre como os humanos desejam ser. De fato, sobre como eles deveriam ser”. Maggin, bem antes, em 1972, escreveu a HQ “Precisa Haver um Superman?” e antecipou o tema que o próprio “Reino do Amanhã” explora com Mark Waid e Alex Ross e que, agora, Zack Snyder, Chris Terrio e David S. Goyer abordam em “A Origem da Justiça”. É onde eu tenho que discordar, também, daqueles que afirmam que o Superman é um personagem “sem graça” porque ele é tão superpoderoso que se torna imbatível e imortal. Como ele pode ser “sem graça”, se é justamente devido aos superpoderes e à condição de quasi Deus (características que Maggin curiosamente considera “limitações”) que ele não consegue ser uma pessoa comum? Não ter esse “poder” é o que faz do Superman um personagem extremamente conflituoso — e é ao tocar nesse tema que Snyder mais acerta em seu segundo longa-metragem à frente de uma história do Homem de Aço.

Superman é o protagonista de “A Origem da Justiça”, o que torna o filme muito mais uma continuação direta do longa que o precede do que um prelúdio para o vindouro “Liga da Justiça” (o que ele também é, mas não é sua preocupação principal). Afinal, o Superman (novamente vivido por Henry Cavill) é o único personagem no longa que tem um arco dramático desenvolvido e em torno do qual todo o filme gira. Arco este pautado pela busca dele por viver como um ser humano, por ser aceito entre as pessoas, por ter um trabalho e uma vida de casal normal com Lois Lane (papel de Amy Adams). E talvez, mais que tudo isso, é uma busca por ter algo tão básico como intimidade e privacidade, como muito bem mostra, ainda no início do filme, a cena em que Clark entra de roupa e tudo na banheira com Lois e a cena, posterior, em que ele aparece seminu, dentro de casa, assistindo ao noticiário na TV. É o Clark mais humano (e por isso, frágil) que vemos desde a renegação dos superpoderes em “Superman II” (1980), onde ele também quer ser apenas um homem.



O conflito do Superman, em “A Origem da Justiça”, vem não apenas de sua condição fisiológica o impedir de viver como um de nós, mas também do questionamento que surge a partir dos episódios em que ele se envolve, nos quais inocentes perdem a vida — o que é usado pelo governo norte-americano, representado por uma senadora (personagem de Holly Hunter), como pretexto para se eximir da culpa no caso de uma intervenção militar fora de seu território. Portanto, o texto principal do filme, que carrega a Justiça em seu nome, é o julgamento do Superman. Ele se vê transformado de Salvador em Demônio e se vê odiado pelo povo, que quer queimá-lo em praça pública, pois as pessoas foram manipuladas a crerem que ele é o vilão.

Obviamente que Batman (vivido por Ben Affleck) tem um papel central na história, mas, numa análise mais cuidadosa, percebe-se que sua trama apenas assessora a principal. É, portanto, uma subtrama. O Bruce Wayne a que somos (mais uma vez) apresentados aqui é, infelizmente, um personagem unidimensional que só quer se vingar (sentimento que, sim, também o torna humano) e, nesse intento, ele serve como marionete de Lex Luthor (papel de Jesse Eisenberg). Luthor, o dono de uma grande corporação que compra o poder público, manipula o representante da economia e revolta a opinião popular. Embora também seja um personagem sem camadas, Luthor tem uma personalidade mais atraente pela excentricidade e, mais importante, narrativamente é quem coloca as cartas na mesa (referência não involuntária ao Coringa, assumo, pois há um pouco do palhaço maníaco neste Lex).

Infelizmente, Snyder e sua equipe fazem de tudo para prejudicar um filme que tem ideias muito boas a respeito do Superman. São ao menos quatro tramas ocorrendo simultaneamente ou concorrendo uma com a outra (o questionamento do Superman, a investigação de Lois, a vingança de Batman, os experimentos com a Kryptonita — sem contar a introdução da Mulher Maravilha, que está ali mais para servir como a perfeita “Deusa” Ex Machina do que qualquer outra coisa). O problema é que essas tramas não são bem amarradas e nenhuma ideia é explorada a fundo, apenas jogadas na tela, uma atrás da outra. É como se Snyder montasse uma cadeira sem apertar bem os parafusos: fica aquela coisa mal ajambrada, bamba, torta e desconfortável. Ele mostra, assim como em seus filmes anteriores, estar mais interessado na iconografia das imagens que cria do que em saber contar uma história, ao mesmo tempo em que exibe sua falta de sutileza habitual, com uso gratuito de câmera lenta, establishing shots, flares e excesso de explosões, raios e qualquer tipo de fonte de luz que ele possa usar.

Ademais, é uma pena que seja um filme tão aborrecido e pessimista, que começa e termina com um enterro, que leva a sério demais o conceito de filme sombrio, prejudicando assim até o Cavaleiro das Trevas. Este é um filme de super-herói que busca um público adulto, as crianças de ontem, ignorando as de hoje, já que constrói para elas um mundo triste que não permite nem mesmo ao Superman girá-lo ao contrário. Se não é possível voltar no tempo, resta, então, o básico, a volta ao pó (para um novo começo, é claro). Mas é na volta ao útero que Snyder acerta mais uma vez, já que a presença da mãe (ou a ausência dela) é o único ponto em comum que justifica a existência de Batman e Superman no mesmo filme. O embate começa e termina como briga de criança, pois todo garoto sabe que colocar a mãe no meio é jogar fósforo aceso num tanque de gasolina. E é Luthor quem paga por isso.

Uma versão possível

Tendo assistido ao filme duas vezes, eu desenvolvi uma teoria de que é possível editá-lo de modo que a maior parte das cenas do Batman seja eliminada para que seja de fato contada uma história do Superman, em que ele seja o protagonista pleno com sua função no mundo sendo questionada.

O Batman só apareceria no final junto com a Mulher Maravilha, sem apresentações: simplesmente entrariam em cena para ajudar no combate contra o Apocalipse. Subentenderíamos que eles estavam observando tudo até ali e resolveram entrar em ação. Seria a origem da Liga da Justiça e, dessa forma, eliminaríamos a rivalidade entre Batman e Superman (provavelmente criada mais por razões de marketing do que por necessidade narrativa), sem prejuízo à trama principal.

A nova versão proposta, no entanto, tem a dificuldade de lidar com a subtrama que envolve a descoberta da Kryptonita por Lex, pois daí teríamos que eliminar todas as cenas da segunda luta contra o Apocalipse, já que não haveria justificativa para a existência da lança criada pelo Batman e que serve como arma para o sacrifício final do Superman. Eliminando a segunda luta, Superman “morreria” após a explosão nuclear e não veríamos a Mulher-Maravilha em ação, apenas conversando com Bruce Wayne no funeral. Também perderíamos o “sonho” do Batman, que é uma boa cena e oferece aos fãs pistas muito interessantes do que deve vir a seguir.

Sim, seria um filme bem diferente, mas mais enxuto e com sua essência preservada. E sim, eu sei que estou aqui a falar do filme que eu gostaria que ele fosse, e não do que ele é. Foi apenas uma digressão, mas já que um dos temas centrais aqui é fazer sacrifícios… Por que não? ■