“Praça Paris”: Uma reflexão sobre violência e empatia

por Fernando Machado

Após vencer o prêmio de melhor direção no Festival do Rio, “Praça Paris” da diretora Lucia Murat estreou na 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo com grande expectativa e bom público presente, em uma sessão que infelizmente por motivo de saúde não contou com a presença da diretora, mas sim com parte do elenco.

O filme gira em torno de Glória (Grace Passô), uma ascensorista na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Filha de um pai abusivo, Glória busca tratamento psicológico com a terapeuta portuguesa, Camila (Joana de Verona) para lidar com as memórias dos abusos do pai e com a ausência e proteção de seu irmão, Jonas (Alex Brasil), que está preso.



Logo na primeira cena, é notável a direção criativa de Lucia Murat. A diretora consegue com leves movimentos de câmera explorar a beleza do cenário português, terra natal de Camila, e com muita competência faz um raccord para a cidade do Rio de Janeiro, colocando a câmera dentro do mar carioca acompanhando o “mergulho” de Camila, não só nas belas praias, mas também na violência e hostilidade daquela cidade. Outra cena muito simples que mostra o poder da direção na forma de retratar a violência carioca é quando Glória conversa com Miguel (Digão Ribeiro) sobre ele ter abandonado o crime. No momento em que ele responde que sim, há um corte e a câmera passa a enquadrá-los por entre grades, mostrando que por mais que ele tentasse sair do crime, ainda há o aprisionamento dele diante do poder que este exerce sobre todos naquela comunidade.

Lucia Murat é uma diretora/roteirista que gosta de trabalhar a violência e os efeitos dela nas pessoas. Glória, por exemplo, de tanta exposição a esses atos de violência, cria uma armadura para se blindar. Não há qualquer medo de Glória diante desses atos brutais já que convivera com isso por anos. Já Camila, moça branca, estrangeira e de classe média, não tem a menor ideia do que seja viver nas comunidades pobres do Rio. E por mais que Camila estude sobre a violência e até mesmo se importe com isso, ela nunca a vivenciou. É o limite da empatia. Só quem vive lá sabe como é, e por mais que Camila tente entender as causas desse problema, ainda é uma garota que os encara de cima para baixo.

Durante uma sessão, Glória revela que sonhara que ambas haviam trocado de lugar. Repare que nesse momento Camila se interessa em saber como seria Glória em seu lugar. Mas quando Glória revela que a troca seria mútua e pergunta como seria se Camila trocasse de lugar com ela, a expressão dela muda completamente, e a curiosidade se torna pavor. Mas o mais bonito dessa cena é seu desdobramento na seguinte onde Glória falta à sessão e Camila, num movimento de buscar empatia, se senta no lugar do analisado, tentando entender o que se passara com sua paciente.

Esse cuidado de Lucia na direção e montagem, auxiliado pela excelente trilha sonora de André Abujamra e Marcio Nigro, cria uma tensão que acompanha o filme todo, e mesmo nos momentos mais leves, que contam com um bom humor muito natural e sarcástico, a tensão nunca se dissipa. Há uma cena, onde apenas ouvimos os acontecimentos por detrás de uma porta entreaberta, sem vermos o que realmente está acontecendo. Mostrar o que acontecia ali não teria o mesmo efeito de tensão, e são essas escolhas que justificam o prêmio de melhor direção para Lucia Murat.

Entretanto, assim como acontecera com “Brava Gente Brasileira” o roteiro de Lucia, aqui assinado em parceria com Raphael Montes, me causa estranheza na forma como retrata o “homem branco” ou, nesse caso, a “mulher branca”. Em “Praça Paris” há um incômodo no enviesamento da personagem Camila que acaba se tornando a “branca” que tenta de alguma forma ajudar, mas acaba sofrendo por isso tornando-se paranoica. Não é tão grave quanto a representação de Diego no citado “Brava Gente…”, que consegue se fazer de herói romântico injustiçado mesmo tendo estuprado uma índia, mas ainda assim, o desenvolvimento de Camila é problemático ao retratá-la como a “garota branca que tenta salvar Glória”, mesmo sendo cruel com ela e com outros marginalizados na história. Além disso, seu mal desenvolvimento limita o aproveitamento da personagem que realmente importa na história – Glória. Grace Passô é uma atriz excepcional que vale ficarmos de olho em seus próximos trabalhos. Ela já havia aparecido muito bem no premiado “Elon Não Acredita na Morte” de 2016. Com olhos expressivos e um sarcasmo delicioso, a atriz engole qualquer atuação perto dela. Não à toa levou o prêmio de melhor atriz no Festival do Rio. Seu olhar consegue expressar ódio, medo, embaraço, terror e doçura. Queria ter visto mais dela em tela.

Mas mesmo com esse pequeno incomodo no roteiro, o filme me agradou muito pela forma como aborda o problema da violência no Rio de Janeiro, mostrando bem que a solução não é tão simples quanto alguns políticos populistas pregam. Não é matando bandido que se acaba com a violência, assim como não é acabando com a corrupção que se equilibra a economia no país. Toda complexidade da violência está presente na relação de Glória e Camila e também na relação de Glória e seu irmão Jonas. Eu moro ao lado de uma comunidade pobre e observo, ainda que de fora, a complexidade da situação. Peço licença para compartilhar um fato que presenciei há poucos dias. Andando pelas ruas de lama e esgoto a céu aberto pela manhã, vi um rapaz de camisa amassada e bermuda perguntando para uma moça que horas eram. A moça assustada acelerou o passo com a bolsa abraçada ao corpo. O rapaz visivelmente constrangido e com lágrimas nos olhos me olhou e disse: “é sempre assim, acham que porque sou favelado sou bandido”. Fiquei com aquilo na cabeça por dias, e após assistir “Praça, Paris” devo permanecer com isso por mais um bom tempo, o que é sempre muito bom. Cinema não precisa acabar após o fim da sessão. Podemos levar a discussão proposta para nossa vida e refleti-la em sociedade.

“Praça Paris” é tecnicamente o melhor trabalho de Lucia Murat, e ainda que possamos problematizar a representação “branca-heroica-paranoica” no roteiro, isso não apaga seus acertos. O filme consegue abordar o racismo estrutural do qual vivemos, que dificulta que um “pobre favelado” consiga se livrar do ciclo de violência no qual é inserido desde o nascimento, tendo de trabalhar duas vezes mais que privilegiados como Camila para tentarem oportunidades iguais.  Mas assim como disse Mano Brown em um dos seus shows com os Racionais Mc’s: “Como fazer duas vezes melhor se você está pelo menos cem vezes atrasado?”. “Praça Paris” é um estudo sobre violência e empatia. O filme provoca-nos como espectadores e nos propõe sairmos de nossa zona de conforto e privilégios, distantes do conflito, para refletirmos nossas ações diante da marginalização de um grupo de pessoas. ■