Jogador Nº 1

O “Jogador Nº 1” e a tecnologia como fuga da realidade

por Marina Oliveira

É inquietante o fato de que muitas vezes me pego encarando meu celular durante uma chamada, pensando que seria muito mais cômodo se a tal pessoa tivesse me contatado por meios que não exigissem minha interação vocal-corporal ao invés de uma ligação telefônica. Talvez este seja um episódio corriqueiro e mais comum do que eu esperava, pois segundo este estudo realizado em 2017 pela CBS, 7 a cada 10 millennials (gerações Y e Z, formadas por pessoas nascidas a partir da década de 1980 até o início dos anos 2000) preferem trocar mensagens do que falar pessoalmente ou via ligação de voz. Mas o que essa informação tem a ver com “Jogador Nº 1”?

No final de 2014, eu tive meu primeiro contato com a primeira obra de ficção do escritor Ernest Cline, difundidamente vendida como uma escusa história de ação para motivos saudosistas da década de 1980. Me surpreendi com a fluidez narrativa e com a rapidez com que me apeguei aos personagens, que acabam de chegar às telas do cinema pelas mãos de Steven Spielberg (por razões óbvias). Porém hoje, quase quatro anos depois de ter lido o livro, e após quatro temporadas de “Black Mirror”, eu me surpreendo por outro aspecto: a proximidade.



Apesar de muitos enxergarem a história de ação/nostalgia como uma clara crítica que estabelece o pobre marginalizado lutando contra as grandes corporações — que de fato regem as relações políticas e também sociais em nosso mundo — vejo aqui um comentário simples que vai muito além do maniqueísmo por vezes utilizado em tramas do gênero. O protagonista Wade Owen Watts já estabelece, logo no primeiro capítulo, seu ceticismo ao alegar que “[…] ser um humano no planeta Terra, no século XXI, foi o grande golpe. Existencialmente falando.[…]”. Fruto de uma dura infância negligenciada pela tia materna, essa visão cética leva nosso herói a crer na realidade virtual como substituta perene para experiências e relacionamentos físicos. Nesse universo futurista, temos a presença de um jogo online chamado OASIS (sigla para Ontologically Anthropocentric Sensory Immersive Simulation; em português, “Simulação Imersiva Sensorial Ontologicamente Antropocêntrica”), desenvolvido por uma espécie de Steve Jobs da ficção, chamado James Halliday. Esse objeto tecnológico extremamente presente e acessível à população do livro, mesmo para os mais pobres como Wade, logo se tornaria uma expansão da vida cotidiana, facilitando e cambiando atividades do dia-a-dia como ir à escola ou ao trabalho. Ninguém mais precisaria sair de casa, poupando assim tempo e dinheiro. Estranho como isso soa familiar, não? 

“Felizmente, eu tinha acesso ao OASIS, que era como ter uma válvula de escape para uma realidade melhor. O OASIS manteve minha sanidade. Foi meu parquinho e meu jardim de infância, um lugar mágico onde tudo era possível.“ — Jogador Número 1 (Ready Player One), Editora Leya, 2011.

Em tempos de instabilidade econômica e democratização do acesso à internet e a dispositivos tecnológicos, vemos cada dia mais o surgimento de trabalhadores freelancers adeptos do expediente em home office. A cada dia, reduzimos distâncias físicas realizando dobras no espaço-tempo que apenas o advento da tecnologia poderia nos proporcionar. Agora, cada vez mais “rápidos”, nos ocupamos de mais e mais afazeres (pois a eficiência assim nos permite), mantemos contato à distância com o maior número de pessoas e competimos contra outros e contra nós mesmos, isolados em nossos micro-universos virtuais, na falsa impressão de termos conhecimento e liberdade. Navegamos às costas de murais cada vez mais estilizados por robôs que dizem compreender nossos gostos e aquilo que melhor nos satisfaz. E quando nos resta de fato um tempo livre para o lazer, decidimos despender dele frente às variadas telas de universos sociais simulados.

Quando adentramos nas redes sociais, nós temos a chance de construir nossa persona do zero, delimitando desde nossa declaração de gênero à lista de romances favoritos. Não à toa esses sites tendem, a cada atualização, à “gamificação” dos processos de preenchimento de formulários, tornando a experiência mais agradável e recompensando usuários a cada nova informação pessoal que oferecem à rede. Ficar online se torna mais prazeroso a cada acesso. Somente vemos o que gostamos e apenas lemos o que queremos. Assim, temos o surgimento das bolhas sociais que aos poucos formam grupos hostis à qualquer opinião divergente por não mais saber lidar com contrapontos e ideias diversas. Portanto, quando Wade se refere à existência humana como um grande golpe, entendo por essa fala que muitos de nós existimos, mas não coexistimos. Perdemos aos poucos aquilo que nos torna mais humanos: a real interação.

Segundo um artigo publicado pela Forbes em Maio de 2017, a dificuldade da geração Y em se comunicar pessoalmente pode ser explicada pelo costume de desenvolvermos conexões artificiais, como namoros online e pedidos de amizade via Facebook. Essas relações nos livram de lidar com assuntos e conversas complicadas pessoalmente, tirando muitas vezes o costumeiro “peso” de um relacionamento. Outro aspecto apontado pelo estudo para a perda do tato social se deve à quantidade que se sobrepõe à qualidade. Estamos ligados a números, que muitas vezes trazem o temido joio junto ao trigo. Também percebe-se que as novas gerações desenvolvem desde cedo a necessidade e a habilidade de pensar e editar seus textos/falas. Assim sendo, podem remover qualquer senso de vulnerabilidade, deturpando as reais intenções por trás das palavras. Ganhamos o poder da edição, perdemos a crueza das reações.

Se nos escondemos em perfis virtuais por medo da realidade, desejo de fama ou por pura convenção, não devemos nunca deixar de nos atentar para aquilo que acontece ao nosso redor, de verdade. Devemos fazer do virtual uma extensão que complementa nossa realidade e não a completude de nossa existência. Afinal, ainda somos pessoas de carne, osso e natureza humana. Quem sabe um dia, assim como no episódio “San Junipero”, da terceira temporada de “Black Mirror”, possamos enfim transcender essas questões. Porém, hoje, ainda somos Wade Watts, simulando mundos no virtual, tateando com cautela nosso eu real. ■