“Baseado em Fatos Reais”: Suspense entre a realidade e a ficção

Adaptado do romance de Delphine de Vigan pelo roteiro de Roman Polanski e Olivier Assayas, “Baseado em Fatos Reais” trabalha os limites entre ficção, verdade e identidade, o isolamento dos escritores durante a feitura de suas obras, além das relações com personagens reais ou imaginárias.

Nas mãos de Polanski, a musa e companheira Emmanuelle Seigner trocou a sensual “Pele de Vênus” pela vulnerabilidade de uma mulher real e suas crises, Delphine, esgotada após o sucesso de seu último best seller com toques autobiográficos, possivelmente o gatilho para as ameaças anônimas que passa a receber. Travada no clichê da página do Word tão vazia quanto seus pensamentos, não parece pronta para seu solicitado próximo volume e se desconstrói em uma senhora frágil, lúgubre, com marcas naturais da passagem do tempo, a ponto de perder a integridade e a dignidade. A figura materna a persegue não apenas na fotografia imponente em preto e branco da capa da edição, mas nos agressivos momentos oníricos que a perturbam.

"Baseado em Fatos Reais"
Foto: Divulgação

Envolta na tentação da presença suspeita e etérea de Elle (Eva Green, matando saudade do francês silenciado nas telas a 13 anos), de beleza impecável já pela manhã, apesar do apartamento alugado e da ausência de amigos para comparecer às suas festas, Delphine aceita a inspiradora nova amiga como salvadora de sua rotina. Semelhanças físicas se moldam à fantasia da criação e ela aprende a se satisfazer apenas com a companhia de sua versão mais jovem, que ora se ajuda ora se sabota, a vontade na própria casa. Torna-se uma questão de morder a isca ou não, nesse jogo de gato e rato, na dinâmica de fascinação e nos limites da confiança entre elas.



O processo de escrita invisível se dá com muita classe em páginas arrancadas de cadernetas, taças de vinho erguidas por unhas vermelhas e até na homenagem singela pela surrada camiseta do Bowie. A roda gigante, o bizarro livro infantil em ambiente nostálgico e a atmosfera de medo e suspense conferem ainda contornos de horror à produção, que ganha pontos na inevitável comparação com “O Escritor Fantasma”. Aqui, além da comum paleta de cores acinzentada e dos créditos finais inspirados por padrões editoriais, Polanski vai do político ao pessoal quanto ao direcionamento da trama e do masculino ao feminino quanto ao protagonismo. Os apartamentos da trilogia são também revisitados, a começar pela escada em caracol que lembra “O Inquilino”.

No velho dilema entre separar a vida real da ficção, o filme só perde meia estrela em respeito aos crustáceos vivos que Elle joga na panela para fazer jus à cruel imaginação de Polanski, este monstro genial com vivências e escolhas reais que lamentavelmente repelem o público de seu cinema. ■

“Baseado em Fatos Reais” está em cartaz nos cinemas.