Ingmar Bergman

O centenário de Ingmar Bergman – Vida, arte, impressões

“Filme como sonho, filme como música. Nenhuma outra forma de expressão artística é capaz, como o cinema, de vir ao encontro dos nossos sentimentos, penetrar nos recantos mais obscuros de nossa alma”.

— Ingmar Bergman

14 de julho de 1918. A data é a do nascimento, e em razão dela comemoramos o centenário deste que além de dramaturgo e cineasta é uma das facetas suecas mais conhecidas mundialmente. Figura simultaneamente intrigante em sua vida pessoal e límpida em sua obra; digo isso pois, a vida de Ernst Ingmar Bergman, do nascimento à fama, trilhou caminhos de conexões intensas, complexas e que sempre se interconectavam a seu plano de produção artística.

Bergman nasceu e cresceu em família religiosa: seu pai, pastor luterano extremamente rígido e firme; sua mãe, enfermeira. Foi criado em Uppsala (Suécia), em moldes muito ortodoxos, com mais dois irmãos. Esta é a síntese mais essencial para começar a entender sua vida, seu trabalho, sua relação com os palcos e telas e o conteúdo apresentado neles.



Uma criação familiar que deu asas a uma imaginação prolífica enquanto atingia sua sociabilidade de uma forma oposta. Ao ler a história de Bergman, seja a escrita por ele em “Lanterna Mágica”, seja a que tenta desmistificá-lo através de opiniões da renomada crítica, sempre me pareceu que o cineasta se via em um limbo no qual, absorto na realidade, sabia o que queria falar, mas não como falar e, por isso, em seu resgate vinha a arte, na qual ele podia explicitar cada ponto de evolução de seu pensamento. E é isso que eu gostaria de enfatizar neste ensaio.

Quando a proposta de escrever sobre ele surgiu, tive um relapso de imagens sobre tudo aquilo que vivenciei acompanhando a filmografia e a biografia de Bergman. Afunilando meus pensamentos, cheguei à ideia de que Bergman é uma imagem límpida quando se mergulha em sua obra artística.

A receita para seus filmes me parece absolutamente uniforme: pegue um conflito moral, adicione a ele personagens reflexivas, uma cena de diálogo bruto e depois tente separá-las. Não, Bergman, em seu modus operandi, nunca liquidificou todos os ingredientes. Na realidade, ele realizava esse exercício de unir elementos brutos para separá-los e limpá-los. Decifrando essa minha metáfora grosseira, entendo que seu esforço é por lapidar a trama, o roteiro, ainda que haja brutalidade no seu argumento, na personalidade dada às personagens, ou no contexto histórico no qual se passa a película. É límpido porque do básico bruto, da receita homogênea, ele abre espaço para o jogo de luz e sombras, para o silêncio contagiante, o qual permite ao espectador momentos essenciais de digressão e digestão daquilo que está sendo retratado. Nossa mente, ao assistir a um filme do sueco, nos oferece lampejos iluminados sobre como interpretar cada cena, cada acontecimento. Bergman produz em nós um espaço amplo, uma sala de estar na qual pode-se deleitar de minutos reflexivos sobre o divã da emoção cinematográfica.

É através dessa ideia que vejo imperiosa necessidade em destrinchar sua filmografia, rememorando, sem uma rígida linha temporal, alguns dentre seus 46 filmes. Meu primeiro contato com Ingmar Bergman deu-se através de um curta-metragem: “O Rosto de Karin” (1984). É este o nome de sua mãe e no filme, que utiliza os moldes do cinema mudo, o diretor procura remontar sua vida, infância e valorizar a figura materna. Apesar de mais recente em sua obra e pouco reconhecido, o curta intrigante me deu os primeiros elementos para decifrar quem seria aquele cineasta. Não à toa, Bergman, em muitas de suas obras, utiliza o nome “Karin” em suas personagens. Assim o faz, por exemplo, em “Gritos e Sussurros” (1972).

Gritos e Sussurros (Viskningar och rop, 1972)
“Gritos e Sussurros” (Viskningar och rop, 1972)

Neste longa, quatro mulheres convivem em uma casa de campo, uma delas está enferma e recebe cuidados de suas duas irmãs e de uma empregada. Cada personagem deve lidar com seus conflitos internos, presas a um ambiente bucólico e a relações bastante truncadas. Uma das irmãs leva o nome da mãe do diretor, como já mencionado, e, fica ao leitor e ao espectador a questão: o quanto da vida de sua mãe Bergman desejou colocar naquela personagem? Sabe-se, segundo as anotações do autor, que Karin era a personagem mais forte de caráter. Não se pode afirmar precisamente as intenções de Bergman, mas, através deste filme, posso exclamar que o diretor consegue nos colocar em posição de êxtase com relação à própria raça humana. Um homem que nos faz entender ou desesperar por aquilo que é ser humano. Em seu livro “Imagens”, Bergman revela que a ideia de “Gritos e Sussurros” o atormentou por algum tempo, no qual apenas conseguia imaginar quatro mulheres vestindo branco em um ambiente predominantemente vermelho. E em razão da necessidade de construir um ambiente desta cor, o filme foi feito em cores, quebrando com a tradição do cineasta de filmagens em preto e branco. Ele designou a película como um poema:

“Um ser humano deixa esta vida, mas, como num pesadelo, detém-se a meio caminho, pedindo aos que ficam ternura, reconciliação, libertação. […]. Estão mais duas pessoas presentes, e tanto as ações como os pensamentos delas estão em relação com a morte, a moribunda. A terceira pessoa presente vai redimir a doente, incutindo-lhe paz, acompanhando-a na fase final.”

— Ingmar Bergman, “Imagens”, p.97

Neste filme, apresentam-se atrizes e um ator conhecidos por suas marcantes atuações em filmes de Bergman: Harriet Andersson, Ingrid Thulin, Liv Ullmann, Kari Sylwan e Erland Josephson. Ullmann, inclusive, casou-se com o diretor, o qual teve uma vida pessoal abarrotada de separações e casamentos, no total cinco, dos quais nasceram nove filhos. As atrizes Bibi Anderson e Harriet Andersson também tiveram romances com o diretor. Aliás, Bibi Anderson ficou conhecida por estrelar alguns filmes de Bergman, dois dos quais são joias da filmografia do diretor: “Persona” (1966) e “O Sétimo Selo” (1957).

Persona (1966)
“Persona” (1966)

Em “Persona”, Alma (Bibi Anderson), uma enfermeira, deve cuidar de Elisabeth Vloger (Liv Ullmann), uma atriz que não se comunica mais e vive um estado de saúde física e psicológica deturpado. Alma sempre fala de seus segredos mais obscuros para Elisabeth, mesmo sem receber resposta. A trama se desenvolve em um ambiente envolto por culpa, angústia e desespero; o título do filme é uma menção às máscaras utilizadas no teatro grego. Nesse contexto, Alma vê-se cada vez mais absorta e confusa a respeito de sua própria essência e auto-consciência. É uma obra que nos faz buscar a verdade sobre as máscaras e faces reais que se encontram em cena. O filme possui imagens esplêndidas que marcam a filmografia de Bergman e a história do cinema mundial até hoje, como, por exemplo, a sequência de abertura. No período de produção do longa, o diretor acabara de sair de uma temporada fortemente movimentada no teatro, o que lhe deu argumento para a ideia do roteiro. Segundo suas anotações, “Persona” salvou-lhe a vida como cineasta e foi um filme no qual pôde debruçar todos seus desejos, sem se limitar à opinião ou impressões do público e de outros especialistas. Trago aqui uma análise belíssima feita por ele a respeito de sua relação com a arte e que serviu de argumento para a criação de “Persona”. Afinal, é um filme cuja análise se desdobra em muitas opiniões e referências, necessitando um estudo aprofundado para fazer jus a sua maestria.

“A criação artística em mim manifesta-se sempre como um tipo de fome. Foi com grande satisfação que constatei esta minha necessidade, embora em toda minha vida nunca tenha perguntado como é que tal fome surgiu, nem exigi terminantemente satisfazê-la. Nestes últimos anos, quando ela começou a diminuir, sinto que é urgente esclarecer os motivos de minha atividade. Uma recordação remota de minha infância é a necessidade que tinha de mostrar aos outros aquilo que conseguia fazer […]. Lembro-me que sentia uma necessidade imperiosa de dirigir as atenções dos adultos para essas manifestações, provas de minha presença no mundo dos sentidos. Mas o interesse que despertava em meu próximo nunca me bastou. E quando a realidade não era suficiente, começava logo a fantasiar. […] Assim, uma criança sedenta de contato e de fantasias passou rapidamente a ser um sonhador ferido em sua sensibilidade e manha. […] Que o cinema seja o meio por que me expresso, é absolutamente natural. Fiz-me compreender numa língua que passava ao lado da palavra de que carecia, da música que não sabia tocar, da pintura que me deixava indiferente. Subitamente tive a possibilidade de me corresponder com o mundo numa linguagem que literalmente fala da alma para a alma, em termos que, quase de maneira voluptuosa, escapam ao controle do intelecto.”

— Ingmar Bergman, “Imagens”, p.48-53

Em 1968, nasce “A Hora do Lobo”. Uma obra que dispensa os diálogos e bombardeia, pelo simbolismo imagético, milhares de sensações simultâneas, de representações; é universal e atemporal. Max von Sydow interpreta o pintor Johan, um homem que muda-se para uma afastada ilha com sua esposa (Liv Ullmann). Bergman retrata conflitos psicológicos a medida que o casal conhece um grupo de pessoas naquele local. É um dos filmes com carga fortemente psicológica e que beira à fantasia, assim como Bergman o fez em “Persona”. O cineasta, em uma de suas entrevistas, disse que se “Persona” tivesse falhado, ele não se atreveria a pensar em “A “Hora do Lobo”. Este, um de seus filmes mais difíceis de digerir, com um ritmo mais frenético do que os demais, ainda assim não deixa de ter as características que fazem de Bergman este grande cineasta: o espectador participa do filme, se envolve e tenta decifrar cada ponto da trama que passa do real ao quimérico. Assim como em “Persona” e todos os outros filmes que tratam da relação de crença e descrença, aqui fé, desilusão, dimensão psicológica do real e da fantasia podem ser explicadas através de uma manifestação de Bergman, também presente no livro “Imagens”: “Que a educação que me deram foi um humor fértil para os demônios de minhas neuroses, não se pode duvidar”.

A Hora do Lobo (Vargtimmen, 1968)
“A Hora do Lobo” (Vargtimmen, 1968)

Dando continuidade, “O Sétimo Selo” (1957), a meu ver, surge como uma representação exata e absoluta daquilo que mencionei ser o receituário de Bergman. Através dele, o diretor contesta muito de sua própria infância e criação, tratando da crença em Deus, da morte e da vida, de propósitos e despropósitos. Na obra, um cavaleiro (Max von Sydow – também um dos atores com forte presença na filmografia de Bergman) volta das Cruzadas e lida com o cenário da peste negra. Sua fé encontra-se abalada e, enquanto busca o significado da vida, encontra a Morte personificada (Bengt Ekerot) que deseja levá-lo. Então, o cavaleiro convida a Morte para um jogo de xadrez, cujo resultado definirá se ele irá com ela ou não. A trama se desenrola neste desafio. Mais uma vez, uma obra icônica e metafórica do diretor que, filmada em apenas 35 dias, levou aos espectadores a sensação acalentadora de que suas dúvidas a respeito de crenças, morte e vida são, ainda hoje, compartilhadas pela raça humana. O longa ganhou o Prêmio do Júri no Festival de Cannes.

O Sétimo Selo (Det sjunde inseglet, 1957)
“O Sétimo Selo” (Det sjunde inseglet, 1957)

Em 1960, Bergman nos presenteia com “A Fonte da Donzela”. No mesmo panorama de “O Sétimo Selo”, a trama acontece na Suécia do século XIV e aborda a história de uma família cristã fervorosa que incumbe sua filha adolescente (Birgitta Pettersson) de acender velas para a Virgem Maria na igreja da região. No caminho, ela encontra um grupo de homens que a estupram e matam. Mais tarde, coincidentemente, eles buscarão abrigo na casa da família da menina. Creio que este é um dos filmes de Bergman que exerceu influência direta no cinema mundial, pois, posteriormente, várias produções se inspiraram no mesmo enredo, gerando variações no cinema de horror, a começar por “Aniversário Macabro” (The Last House on the Left, 1972), de Wes Craven. Mesmo assim, ele está em uma posição nebulosa dentro da filmografia de Bergman, sendo subestimado.

A Fonte da Donzela (Jungfrukällan, 1960)
“A Fonte da Donzela” (Jungfrukällan, 1960)

Posteriomente, com “Através de um Espelho” (1961), Bergman vem ceifar por completo as suas dúvidas a respeito de uma crença no divino e no espiritual; o diretor afirma que com este filme seu hábito de rezar se desfez por completo. Trata-se de uma trama na qual a jovem Karin (Harriet Anderson) – novamente, o mesmo nome da mãe do Diretor – entra em conflito com sua família durante suas férias em uma ilha, devendo lidar com seus fantasmas. Para Bergman, “Através de um Espelho” traz o conceito de que tudo o que se considera divino deve ser personificado em um monstro: o “deus-aranha” do filme e das visões de Karin. Max von Sydow e Gunnar Björnstrand também atuam neste longa, como de praxe. Ambos atores do clássico “Morangos Silvestres” (1957). Esta, uma obra cujo personagem principal, Isak Borg (Victor Sjöström), médico aposentado, viaja para receber um título honroso de sua antiga universidade. Durante sua ida, ele reflete sobre a vida enquanto conversa com pessoas que encontra no caminho. Isak Borg, conforme declarou o cineasta, é a representação de duas palavras: “Is”, que significa “gelo”, e “Borg”, que é “fortaleza”. Um filme que trata de questões existencialistas com pontadas de nostalgia imanentes. Levou o Urso de Ouro no Festival de Berlim e emociona por destrinchar uma obra de vida, por ser um balanço de erros e acertos do homem médio dentro de sua consciência envelhecida. Pode-se entender que o protagonista carrega traços do próprio pai do diretor. A mensagem essencial do filme é a de que nos reconciliamos conosco apenas no momento da morte.

Morangos Silvestres (Smultronstället, 1957)
“Morangos Silvestres” (Smultronstället, 1957)

Poderia ainda citar diversos outros filmes de Bergman, como o seu primeiro roteiro, “Tormentos”, de 1944, ou então “Luz de Inverno” (1961), “Vergonha” (1967), “A Paixão de Ana” (1968), “Sonata de Outono” (1977), “Cenas de um Casamento” (1972) e “Fanny e Alexander” (1981). São, igualmente aos títulos tratados neste ensaio, essenciais para complementar o estudo sobre o cineasta. Porém, objetivando correlacionar vida, obra e impressões do diretor, escolhi os filmes nos quais a conexão é mais nítida.

Ernst Ingmar Bergman faleceu em 30 de julho de 2007, aos 88 anos, em sua famosa residência na Ilha de Färo, localizada no Mar Báltico, local onde viveu, imaginou, pensou e amou por muitos anos de sua vida. E, portanto, para homenageá-lo e incentivar a busca pelo entendimento deste que foi, sem exagero, um dos maiores cineastas de todos os tempos, deixo aqui livros e filmes biográficos, fontes de alguns detalhes presentes neste texto:

Livros:

  • BERGMAN, Ingmar. Imagens. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
  • BERGMAN, Ingmar. Lanterna Mágica. Cosac & Naify, 2013.
  • MANDELBAUM, Jacques. Ingmar Bergman – Masters of Cinema. Cahiers Du Cinema, 2011.

Filmes:

  • “A Ilha de Bergman” (Ingmar Bergman – 3 dokumentärer om film, teater, Fårö och livet av Marie Nyreröd – 2004) – Direção: Marie Nyreröd
  • “Liv & Ingmar – Uma História de Amor” (Liv og Ingmar – 2012) – Direção: Dheeraj Akolkar

Na Suécia, o centenário de Bergman será comemorado no Instituto Ingmar Bergman. Por todo o Brasil, salas de cinema farão sessões especiais para homenagear o cineasta, além de alguns outros núcleos culturais que apresentarão seus filmes. O Festival de Cannes, ocorrido em maio, também o homenageou e apresentou o documentário “Bergman 100 Anos” (Bergman: A Year in a Life), que será lançado nos cinemas brasileiro neste mês de julho. ■

Ingmar Bergman
Ingmar Bergman