Estamos todos aqui, estamos todos “no corre”

O que mais impressiona em Estamos Todos Aqui é a linguagem cinematográfica associada de maneira muito fiel à vivência das pessoas retratadas e ao chamamento para a ação. A montagem de cortes visíveis, o ritmo ágil, a trilha sonora latejante, os enquadramentos e movimentos de câmera acompanham as urgências, aprisionamentos e dificuldades das vidas dos moradores da Favela da Prainha, no litoral Sul de São Paulo. A comunidade vive na iminência de despejo, da derrubada de seus barracos, devido ao avanço do projeto de expansão da zona portuária.

Amaranta César, em seu artigo “Sobreviver com as imagens: o documentário, a vida e os modos de vida em risco”, diz que “uma imagem, enquanto ação, parece atuar no mundo contemporâneo não apenas para salvaguardar os seus movimentos, fazendo-os resistir ao tempo, mas para garantir-lhes mesmo a existência ou a sobrevivência.” Nesse sentido, existência, sobrevivência e urgência é o que pulsa do filme e faz dele movimento. Movimento de reconhecer a diferença, do pensar e do querer agir. Movimento que também pode incomodar por impor o confronto com a imobilidade própria do espectador, que assiste no conforto de uma poltrona e, em grande parte, de um lugar de fala privilegiado.

Isso porque a narrativa coloca em diálogo a luta LGBT e outras lutas de comunidades periféricas, especialmente sobre direito à moradia,  além de suscitar discussões sobre o domínio das corporações, o capitalismo e o abismo da desigualdade social. É claro o discurso, desde o título, de que nada acontece isoladamente, ainda que hajam particularidades significativas.  A personagem Rosa (vivida pela artista, youtuber e militante trans Rosa Luz) é representativa dessa complexidade, pois traz mais camadas e intensidade na articulação entre a sua narrativa pessoal e a narrativa do que é coletivo. Sendo que sua narrativa pessoal, tendo sido expulsa de casa e sofrendo preconceitos, é também representativa de coletivos marginalizados, tanto em relação à transexualidade, quanto à sua condição de raça e classe. Sua presença forte como mulher trans, negra e periférica se impõe em corpo e fala, trazendo energia e performance material para as questões levantadas pelo filme.



Na contramão da apatia, dos planos contemplativos e de andanças melancólicas muito já vistos no cinema brasileiro contemporâneo, há aqui a pulsante corrida de Rosa, que a própria câmera parece quase não dar conta de acompanhar, tamanha velocidade. Os “corres” não são apenas desejo de seguir ou fugir, mas como a própria gíria diz, são os enfrentamentos cotidianos. Há também caminhadas firmes por entre os barracos, que passam a impressão de labirintos sem saída, mas que não são capazes de tirar o vigor da personagem, que luta, resiste, apesar de tantas barreiras físicas e sociais.

Como espectadores, somos provocados inclusive pelo jogo metalinguístico entre realidade e ficção, que, em vários momentos, explicita a composição da personagem e pergunta: “Como você acha que deve ser o final dela?” O processo de construção de Rosa acontece enquanto o filme se desenvolve. São chamadas a participar dessa composição as mulheres entrevistadas da Favela da Prainha e também quem assiste ao filme. O que nos leva a refletir que todos nós fazemos parte da construção dessas personagens na nossa realidade social, não somente na ficção.

As entrevistas são o resgate da realidade nesse processo híbrido. As falas das moradoras são seus testemunhos e compartilhamento de experiências. Mas não só. Elas se posicionam, provocam, questionam diretamente o poder que lhes oprime. Elas não estão passivas na condição de entrevistadas, elas tomam o dispositivo para si e falam diretamente com quem assiste. Embora seja essencial que não nos esqueçamos da posição que os realizadores do filme ocupam como mediadores dessa interação.

É uma obra da qual não há como se distanciar ou ser indiferente. Ela nos convoca e ainda crava uma frase final que permanece em nós: “Com quantos pobres se faz um rico?” Com mais indagações do que afirmações e mais rupturas do que prolongamentos, Estamos Todos Aqui se inscreve política e esteticamente de forma vibrante e sem idealismos. Mostra como uma comunidade resiste e cria apoio mútuo — e como resiste também o indivíduo e seu clamor por dignidade.

 

Referência:

Sobreviver com as imagens: o documentário, a vida e os modos de vida em risco, artigo de Amaranta César.

Estamos Todos Aqui (19 min, SP, 2017)
Direção: Chico Santos e Rafael Mellim