Linha de Passe

Futebol pode ser a paixão nacional da maior parte da população brasileira, incluindo aí muitos de nossos cineastas. Mas se pararmos para pensar em quantos filmes sobre futebol já foram feitos no país e quantos desses são bons, há de se concluir que o saldo é muito baixo.

Existe a tese, muito válida por sinal, de que o Cinema, em razão da montagem, causa estranhamento aos olhos que estão mais acostumados a ver uma partida pela TV, ou seja, num plano único, aberto, com poucas variações de cenas. Temos o campo com os jogadores na maior parte do tempo e os cortes se resumem a mostrar o juiz, o escanteio, o banco, a torcida, o replay.



“Linha de Passe” não é um filme sobre futebol e não faz nada para mudar a forma como o esporte é filmado. As cenas em que o personagem de Vinícius de Oliveira aparece em campo são semelhantes às que já vimos em outros filmes que recortam a ação dentro das quatro linhas. Para falar a verdade, o que existe de futebol filmado aqui é bem pouco. Ainda assim, a história dos quatro irmãos e da mãe solteira (grávida de mais um), que lutam para manter a família, é perfeitamente comparável ao princípio do chamado “espírito de equipe”, tão necessário para que um time funcione.

Como um técnico diz logo no início do filme, uma equipe não é feita de um jogador só. Da mesma forma, acontece em uma família, sinônimo de união. Tanto em uma quanto em outra, o passe tem o mesmo significado: é a assistência que se dá para todos jogarem bem. Sair vitorioso ou derrotado é outra história, e não é a que Walter Salles e Daniela Thomas estão preocupados em contar aqui.

A dupla de diretores, em parceria com George Moura e Bráulio Mantovani no roteiro, centraliza a narrativa no crescimento interior de cada personagem. A construção de cada uma das tramas paralelas se dá em cima das ações daquelas pessoas, mas o que acontece a partir de alguma atitude tomada por elas é conseqüência do drama que elas vivem, e não da ação em si.

Uma bolsa que é roubada. Uma pessoa que leva uma surra. Um pênalti que é batido. Uma criança que está para chegar. Não irá se ver a sirene da polícia, o grito da torcida ou o choro do bebê. A câmera permanece no rosto do protagonista da ação e o acompanha, porque o importante para o filme é como ele chegou até ali. É o meio acima do fim – algo que talvez falte ao próprio futebol, já que o pensamento comum, tanto no campo quanto na arquibancada, quase sempre é o de que ganhar (o jogo ou o salário mais alto – ou o Oscar) é mais importante do que jogar.

Com um elenco inspirado, entrosado e muito à vontade diante da câmera (mais um fruto do trabalho único de preparação feito por Fátima Toledo), com destaques para a sinceridade e a garra de Sandra Corveloni, a introspecção e a firmeza de Vinícius de Oliveira e a presença de espírito do garoto Kaique de Jesus Santos, “Linha de Passe” traz inegavelmente a marca autoral de Walter Salles e Daniela Thomas. Como em seus trabalhos anteriores, há uma poesia que parece respirar em cada plano concebido pela dupla, por mais corriqueira que a imagem possa parecer: as mãos tocando por baixo o bandeirão na arquibancada, um ônibus incendiado numa avenida, a pia entupida dentro de casa, as ruas de São Paulo vazias para a aventura de um menino.

Ao mesmo tempo, a montagem busca sempre a rima entre cenas, como se os membros da família estivessem em sintonia, ligados o tempo todo. Como numa troca de passes, em um corte seco as mãos erguidas pela mãe Cleusa e os demais torcedores do Corinthians se misturam com as dos fiéis na igreja que Dinho freqüenta; a bola que é lançada dentro do Morumbi é matada no peito por Dario em um campo de várzea; e o movimento da comemoração de Dario após um gol, correndo com os braços abertos como se voasse, é continuado pela velocidade da moto de Dênis em meio ao trânsito de São Paulo.

Mas o que mais chama a atenção na direção de Walter e Daniela é que o tempo todo a dupla busca nas cenas os olhares das pessoas. Há tomadas em que um personagem pode parecer estar olhando para o nada, mas, no fundo, sabemos que ele está olhando para algo que não é filmável, ou que talvez seja melhor não ser filmado, pois a expressão dos atores diz muito mais. Têm se a impressão de que eles olham para um tempo, que pode ser o futuro: o que virá de melhor ou pior amanhã? Afinal, a pia pode se entupir de novo. E eles olham também para dentro de si mesmos, querendo se conhecer, se entender, e também querendo ser vistos.

Este é um tema recorrente no cinema de Walter Salles, um tipo de cinema que grita “Olha pra mim, porra!”. E o que existe de mais louvável nisso é que ele é um diretor que já conquistou reconhecimento por seu trabalho, que pode escolher fazer qualquer tipo de projeto, mas que, junto com Daniela, percebe que este tipo cinema que se olha no espelho não pode deixar de ser enxergado – tanto pelo público quanto pelos nossos cineastas.

Os pequenos grandes momentos de “Linha de Passe” são como dribles e jogadas que fazem a torcida se levantar e aplaudir, mesmo que não resultem em gols, vitórias ou títulos. É o futebol arte, mais do que nunca.

nota: 9/10 — veja no cinema e compre o DVD

Linha de Passe (2008, Brasil)
direção: Walter Salles, Daniela Thomas; com: Sandra Corveloni, Vinícius de Oliveira, João Baldasserini, José Geraldo Rodrigues, Kaique de Jesus Santos; roteiro: George Moura, Daniela Thomas, Bráulio Mantovani; produção: Mauricio Andrade Ramos, Rebecca Yeldham; fotografia: Mauro Pinheiro Jr.; montagem: Gustavo Giani, Lívia Serpa; música: Gustavo Santaolalla; estúdio: VideoFilmes; distribuição: Universal Pictures, Paramount Pictures. 113 min