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Cidade e indivíduo cibernéticos em Ghost in the Shell: O Fantasma do Futuro

Para além dos questionamentos existenciais e filosóficos presentes no anime “O Fantasma do Futuro” (Kôkaku Kidôtai, 1995), de Mamoru Oshii, chama a atenção a forma como são marcadas nas imagens do filme, sob uma estética com referências do cyberpunk, possibilidades de reflexão sobre a influência da tecnologia no modo de vida de uma sociedade e nas relações entre seus indivíduos. A começar pela representação da cidade futurista, totalmente verticalizada, que se impõe de forma opressora, sendo composta por edificações enormes, pontes, avenidas, outdoors e outros tipos de propaganda e poluição visual. Há excesso de informação, predominância de linhas retas – evidenciando o controle sistemático – e luz que transmite sensação de frieza e solidão, especialmente pelos tons azuis. Outros tons e texturas são percebidos em alguns locais onde transitam pessoas comuns, numa clara diferenciação que o filme faz de locais privilegiados e outros desfavorecidos. Tudo isso ambienta o espaço de uma sociedade sucumbida ao poderio tecnológico e de grandes corporações. Quase não se vê pessoas nas ruas e quando se vê, estas são “sufocadas” pelo cenário. Não há natureza ou qualquer vestígio de algo que não seja máquina.

A representação visual faz a cidade ser percebida por nós, espectadores, como uma grande rede, hiperconectada tecnologicamente, mas desconectada de afetos e manifestações humanas. Há cenas, inclusive, em que se pode visualizar uma espécie de inteligência artificial atuando sobre o controle do espaço. O contraponto a toda essa computadorização está, principalmente, na personagem Major, uma ciborgue que questiona sua condição de existência elevando suas reflexões a um nível social e que reverberam em discussões da nossa própria realidade. Major busca algo mais do que somente a aceitação de si como mero programa para servir à uma instituição – no caso a Seção 9, em que ela é líder tática na resolução de casos criminais.

Por conta desses questionamentos e de sua busca existencial, ela é vista em momentos de contemplação, introspecção e melancolia, mesmo que sua principal atividade exija ação e movimentos acelerados. Muitos enquadramentos a posicionam num visível distanciamento da cidade, como quem apenas observa, sem de fato pertencer àquele lugar. Não à toa, sua fuga é o mergulho num lago, ou seja, a imersão numa sensação pura, o contato com a água – e consigo mesma -, sem interferências. A complexidade da personagem é um dos pontos altos da obra, mas cabe também criticar negativamente a fetichização de seu corpo, ainda que sintético, de formas femininas bastante evidentes. Algumas vezes ela é retratada de maneira sexualizada, o que é completamente desnecessário e desajustado com o que ela representa na narrativa. O olhar objetificador é contraditório à sua posição de sujeito na história, ainda mais quando o que se coloca é sua humanidade em “oposição” ao corpo construído artificialmente.

Ainda sobre a representação da cidade, é interessante pensar sobre como não se percebe uma identidade cultural clara. O filme talvez indique, em termos visuais, o quanto a globalização pode afetar marcas únicas de identidade, tornando-as diluídas em um universo de informações hibridizadas. Isso dialoga com a hibridização também dos corpos e das formas de organização da sociedade, que mesclam componentes orgânicos a outros tipos de elementos e que fundem o real ao virtual de maneira fluida. Todas essas relações possíveis entre cidade e indivíduo presentes no filme trazem à tona a importância dos espaços no entendimento de uma sociedade, tanto no presente quanto em projeções ou imaginários de um futuro. No caso, a experiência de existir é ampliada e tudo se torna um mesmo organismo de conexões cibernéticas. Humano e máquina entendidos não como dualidades, mas como uma associação íntima ou simbiótica.

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