Foto: Netflix/Divulgação

“Onde Está Segunda?”: Sete irmãs e uma distopia

O ano é 2073. A Terra, após passar por diversos problemas de superpopulação (e, consequentemente, falta de recursos), se encontra sob uma política governamental restrita de apenas um filho por família. As famílias que decidem não seguir essa regra estão condenadas a enviar os irmãos que vierem após o primeiro a um sono criogênico, onde eles esperarão, congelados, até que o problema da superpopulação se resolva. Nesse cenário, Terrence Settman (Willem Dafoe) resolve, mesmo assim, criar suas sete netas gêmeas (todas interpretadas por Noomi Rapace), que revezam a personalidade e a carreira de Karen Settman, cada uma saindo de casa um dia por semana.

Estes são, respectivamente, o contexto e a premissa de “Onde Está Segunda?”, novo filme original da plataforma Netflix, dirigido por Tommy Wirkola (“João e Maria: Caçadores de Bruxas”). Muito de como o filme se desenrola, porém, não faz jus à premissa interessantíssima e ao rico contexto que ele nos sugere, o que acaba fazendo com que a obra fique na mente do espectador mais como uma decepção para quem esperava boas discussões no plano da ficção científica do que como uma diversão sem grandes propósitos.

O filme se inicia com uma sequência que contextualiza o espectador, contando, em uma narração em segundo plano que emula discursos de políticos (misturando-os com discursos reais e recentes também de políticos), as mudanças que o mundo sofreu até o momento em que se passa o enredo. Por essa narração em off, sabemos que a população cresce em níveis elevadíssimos, o que é redundantemente reforçado pelas imagens de rodovias lotadas de carros e pessoas amontoadas em uma mesma rua. É deveras conveniente apenas contar o que aconteceu com a Terra e as soluções encontradas pelos seres humanos para ambientar o filme, visto que o espectador já começaria entendendo tudo que há para entender, porém, com isso, é, já de início, atenuada a curiosidade desse espectador, que não tem mais a vontade de observar todos os planos e atentar-se para os detalhes de modo a entender o que se passa. Assim, há pouco o que se observar para buscar pistas em “Onde Está Segunda?”, visto que não só o cenário é bem típico de filmes de ficção científica, com instalações governamentais grandes e imponentes e alto uso de tecnologia, como também, depois da sequência inicial, vemos pouca necessidade de responder perguntas sobre aquele mundo futurístico.



Além do problema que se dá nessa sequência, há também problemas no resto do roteiro como um todo. Essa introdução já deixa claro que o filme adota, majoritariamente, uma forma de narrar que é bastante cansativa e pouco criativa: a exposição por meio de diálogos. Pouquíssimos filmes de ficção científica conseguem fugir completamente a esse problema devido à própria natureza do gênero, que tem, frequentemente, que explicar conceitos novos para o espectador. Porém, com certeza existem filmes que conseguem equilibrar a quantidade de exposição por diálogos e por outros elementos de roteiro de uma forma bem mais orgânica do que este. Além disso, muitas vezes o filme se repete, jogando a informação na cara do espectador não apenas uma, mas duas vezes, como é o caso de quando, no primeiro ato, o fato de uma personagem ter vomitado no vaso de flor é mencionado novamente quando já havia sido subentendido pela cena anterior e pelo dia da semana mostrado pelo letreiro.

As personagens principais são outro problema que o roteiro criou para si próprio: eram mesmo necessárias SETE irmãs para que essa premissa funcionasse? Como resultado, temos um filme povoado de pessoas extremamente estereotipadas, que, apesar dos esforços de Noomi Rapace de interpretá-las da maneira mais distinta possível, o que é um trabalho bem competente por parte da atriz, são incutidas das características mais básicas e não conseguimos ir muito longe nos esforços de reconhecer suas personalidades. Isso cria uma hierarquia de importância um pouco estranha entre essas irmãs, pois temos um foco muito maior em algumas delas, como Quinta e Segunda. Além disso, há um esforço um tanto quanto ridículo de dar às personagens algumas vagas características do dia em que nasceram, como a súbita afirmação de Quinta que Domingo deveria ser “a que mais acredita”, fazendo referência ao dia mais comum para missas e encontros religiosos. Por mais que isso possa ser interpretado como “piadinha” do roteiro, às vezes soa como uma forma um pouco preguiçosa de conferir alguns traços de personalidade a essas personagens, deixando-as com características e falas tão simples que elas, mesmo tendo 30 anos, poderiam facilmente ter 15.

O roteiro também se mostra fraco nas reviravoltas que apresenta no terceiro ato, sem dar nenhuma dica de que isso aconteceria e deixando as personagens, que já eram planas, simplesmente confusas para nós. (Spoilers à frente!) Não fica clara a motivação de Segunda ao descobrirmos que ela dedurou as irmãs, por exemplo, e também não fica claro se ela se arrepende ou não durante o encontro com Quinta. A mudança da nossa visão sobre a personagem é tão brusca e tão rápida que não nos permite considerá-la tridimensional por essa atitude, apenas nos deixa confusos sobre o seu caráter: seria ela uma pessoa que planejava isso desde a infância ou seria ela uma pessoa que teve uma ideia ruim e a colocou em prática sem pensar muito sobre isso?

Por fim, é importante criticar também a simplicidade com que o roteirista apresenta a política do “One Earth One Child” (“Uma Terra Uma Criança”), ou seja, a proibição dos irmãos. Todos que a apoiam ou são inocentes, como Adrian (Marwan Kenzari), o namorado de Segunda, e não reconhecem que o sono criogênico pode impedir uma criança de viver com os seus entes queridos, ou são cruéis e não têm o menor pudor ao fazer mal a criancinhas, como os representantes do governo. Isso está, obviamente, inserido num contexto de uma ditadura que reprime violentamente qualquer subversão a essa regra do único filho, e, assim, o longa não permite que o espectador monte em sua cabeça o complexo paradoxo que as políticas de restrição de procriação apresentam: entre a nossa responsabilidade, como indivíduos, de tentar fazer o bem à coletividade; e a nossa liberdade para criarmos a família que quisermos. Assim, a discussão fica simplista e maquiavélica: temos o bem, aqueles que prezam pela liberdade dos irmãos, e o mal, aqueles que tentam ceifar as suas vidas. Ao final, é quase como se o longa nos dissesse, bem limitadamente: “ter irmãos e vários filhos é ótimo! Prezem sempre pela liberdade!”, sem considerar as imensas implicações dessa discussão.

É possível, a partir desse filme, pensar nos usos da ficção científica no cinema (e, em algumas instâncias) na literatura atuais. É extremamente complexo tentar explicar a função da ficção científica no geral, e aqui não me coloco na posição de delimitar propósitos, apesar disso, é válido dizer que pelo menos um dos objetivos de obras que utilizam o recurso da ficção científica (ou especulativa) é nos lembrar dos caminhos que estamos tomando enquanto humanidade, e nos fazer questionar sobre o destino de cada um desses caminhos: onde podemos chegar se levarmos uma política da atualidade, ou uma tendência científica, ao extremo? Muitas vezes, o ser humano, enquanto indivíduo, é levado a pensar apenas que estamos “evoluindo” (científica e socialmente), numa narrativa coletiva que se assemelha a uma linha que sobe em um gráfico, e a produção de ficções que contestem essa visão tacanha, como distopias, por exemplo, é de imensa importância para que vejamos nossos possíveis retrocessos. Porém, para que essa função de provocar reflexões seja atingida, não basta apenas posicionar os elementos de ficção científica como um plano de fundo para a sua história, esperando que o espectador queira sair do filme desenvolvendo e resolvendo por si só os problemas que foram apenas superficialmente mencionados.

Infelizmente, há uma certa tendência em aclimatar filmes de ação com elementos de ficção científica, tanto por conta do óbvio sucesso desse gênero, tanto por conta de uma relativa e crescente “facilidade” (com todas as aspas possíveis, pois ainda é um trabalho bem complexo e caro) de realizar efeitos especiais nos dias de hoje. Eu poderia citar diversos exemplos de filmes realizados assim, mas “Onde Está Segunda?” é um exemplo perfeito: um filme de ação com boa premissa, bom cenário e boas cenas de confronto, mas que faz pouco com essas características e acaba sendo, no fim, apenas um mau exemplar de ficção científica. ■

“Onde Está Segunda?” está disponível na Netflix.