Ícone do site cinematório

FESTIVAL DO RIO 2017: “Batalhas Íntimas”, “How to Talk to Girls at Parties”, “Lake Bodom”, “O Formidável” e mais

A nossa cobertura da 19ª edição do Festival do Rio é feita por Laura Batitucci e Leandro Luz. Acompanhe também pelas redes sociais: YouTube, Twitter e Instagram.

 

Iran | dir.: Walter Carvalho

Foto: Divulgação

“Iran” não é um filme sobre e nem com Irandhir Santos. Estas foram as exatas palavras usadas por Walter Carvalho ao apresentar seu último longa-metragem no palco do Odeon nesta 19ª edição do Festival do Rio. Somos expostos a uma obra cuja autoria se dilui entre realizador, sujeito filmado e a própria noção do tempo, seja pela circular justaposição de imagens e sons, seja pela radical duração dos planos. “Iran” é, de fato, um filme de Irandhir Santos, e a opção por desnudar o processo de criação, composição e imersão do ator enquanto filmava “Redemoinho”, dirigido por José Luiz Villamarim em 2016, é a forma que Carvalho (então diretor de fotografia do filme) encontrou para realizar sua própria obra-mistério, espécie de filme-diário, se valendo de uma câmera discreta para capturar momentos de profunda concentração do ator em sua preparação já no set de filmagem. No fim das contas, “Iran” apenas se descobre obra de arte na montagem de Arthur Frazão, e a obsessão pelos longos planos e pelo uso do som fora de sincronia é o que nos permite absorvê-lo em toda sua plenitude. Não que seja uma missão necessariamente tranquila, mas é somente quando já estamos acostumados com uma imagem e até mesmo cansados dela (que mesmo estática se transforma a todo instante – e aqui posso notar ecos das obras de cineastas como Andrei Tarkovsky e Chantal Akerman) é que a compreendemos de fato, justificando-se, portanto, sua duração. Caso tivesse 30 minutos a menos ou adotado outras fontes de informação – imaginem o horror que seria Walter Carvalho entrevistando preparadores de elenco, diretores e atores tentando “explicar” todo o processo de criação do artista – o filme jamais teria a força que apresenta ao final de sua projeção. O corpo, a voz, os ruídos, as sombras, o foco que insiste em não acompanhar o objeto/sujeito filmado (propositalmente ou não) e o fora de campo são muito bem orquestrados e a impressão que ficamos ao sair da sessão não é a de que passamos a conhecer mais e melhor Irandhir Santos, mas de que acabamos de absorver muito da energia de um dos maiores atores da atualidade no Brasil e no mundo. (Leandro Luz)

 

O Nome da Morte | dir.: Henrique Goldman

Foto: Divulgação

Produção da Globo Filmes e adaptação de um premiado livro homônimo de Kléster Cavalcanti, “O Nome da Morte”, assim como seu protagonista, não parece se importar muito com as questões morais envolvidas em assassinatos. O filme conta a história do pistoleiro Julio Santana, figura real do estado do Tocantins que já admitiu ter matado quase quinhentas pessoas em sua trajetória profissional. A chave de entendimento das motivações (ou falta delas) do protagonista está no início do filme, quando seu tio e mentor na profissão, Cícero (interpretado de forma caricatural, mas ainda inspirada, por André Mattos), diz a ele que a morte vai acontecer independentemente de quem é o perpetrador desse mal, e a única diferença é quem vai ficar com o dinheiro. Tal fala traduz o sentimento de impotência do indivíduo diante de uma violência que é sistêmica, que vem mais do ambiente do que do homem: e isso é reforçado visualmente pelas paisagens exuberantes em contraste com a violência gráfica e sangrenta. Porém, apesar de essa ideia ser, em si, interessante, o filme acompanha o homem, e não o ambiente: não é um retrato da violência nos rincões do Tocantins, e sim da vida, das sensações e dos crimes de Júlio Santana, e, nesse aspecto, a obra falha em nos transmitir qualquer tipo de estudo mais aprofundado de um personagem tão complexo. Em vários momentos, Júlio não parece ser apenas misterioso, mas completamente fechado para nós. Talvez por uma falta de ritmo no filme, que pula muito bruscamente entre situações contraditórias, não entendemos as oscilações frequentes e rápidas do protagonista entre desistir e retomar a profissão. Assim, mesmo que a ideia por trás de toda a construção narrativa seja demonstrar a força de um meio profundamente marcado pela violência sobre o indivíduo, acabamos por não ter, de forma tão eficiente, o lado das reações do indivíduo a isso: ele parece ser apenas levado pelas circunstâncias, mesmo que elas sejam extremamente desfavoráveis a ele em determinados momentos. Há elementos que poderiam nos fornecer uma melhor compreensão do personagem, como seus pesadelos ou a representação da religião em sua vida, porém, estes também são pouco trabalhados, e os realizadores acabam recorrendo a alguns clichês dessa narrativa do pistoleiro traumatizado por seus crimes, como em um sonho no qual Júlio se vê como um homem sendo enterrado vivo. Os melhores momentos de “O Nome da Morte” são aqueles em que há humor – e esse humor, por mais estranho que pareça a um filme sobre temáticas tão pesadas, sabe exatamente do que rir: da loucura de um mundo em que a morte se imbrica em todos os aspectos da vida. (Laura Batitucci)

 

Batalhas Íntimas | Batallas Íntimas dir.: Lucía Gajá

Foto: Divulgação

Os poderosos relatos de cinco mulheres vítimas de violência doméstica são ouvidos e engrandecidos por este documentário de Lucía Gajá. Os oito anos que a conduziram por diversos países como Índia, Finlândia, Estados Unidos e Espanha resultaram numa obra consistente e relevante sobre luta, resistência e ativismo político. Mesclando elementos documentais mais tradicionais com outros que exacerbam o potencial lírico das imagens, a diretora mexicana, que também é roteirista e assina a montagem do longa ao lado de Francisco X. Rivera e Mariana Rodríguez, constrói uma estrutura inteligente ao abordar as diversas etapas pelas quais as mulheres entrevistadas passaram em suas vidas matrimoniais: do casamento aos primeiros abusos; do medo às denúncias e ao abandono efetivo do lar; dos processos judiciais às consequências e sequelas físicas e psicológicas. As primeiras imagens de “Batalhas Íntimas” são registros caseiros das festas de casamento de casais aparentemente felizes e esperançosos por uma vida inteira de afeto e comunhão. Imediatamente depois somos atirados para o instante em que uma das personagens passa pelo processo de divórcio, o que revela logo de cara o tom irônico e assertivo que o filme carregará até os seus minutos finais. Gajá se permite não apenas apontar a câmera para as suas personagens, mas também registrar as cidades pelas quais passa. Portanto, somos impactados tanto pelos pesadíssimos relatos dessas mulheres quanto pelos registros das cidades em que vivem – o que nos permite entender ainda melhor o contexto de cada história contada. Apesar de lidar com memórias perturbadoras e relatos tão incômodos, “Batalhas Íntimas” jamais apela para o sentimentalismo barato. Pelo contrário, é generoso o suficiente para que o espectador se projete nos fatos expostos e crie o nível necessário de empatia. A prova disso é quando, em uma das cenas mais desconfortáveis de todo o filme, uma mulher conta que tentou cometer suicídio (incluindo a morte de seus próprios filhos no processo) justamente por não encontrar outra saída diante de sua situação. A fala desta personagem vem de forma inesperada. O plano é aberto e registra duas mulheres que conversam com a diretora. Outro realizador aqui poderia ter cometido o fatídico erro de dar um close ou incluir na montagem cortes para outras imagens, mas ao invés disso Gajá aposta numa abordagem frontal, deixando sua câmera fixa e sem cortes até que a mulher termine sua história. O terceiro ato do filme nos permite entender como cada uma das entrevistadas seguiu adiante com suas vidas, e a abordagem aqui evita que as personagens se transformem em mártires ou que suas histórias ganhem um falso tom de “final feliz”. Apesar de cada uma delas ter conseguido refazer suas vidas, o peso de um passado violento e desleal, captado e sentido em suas próprias palavras e no semblante de seus rostos, jamais serão deixados completamente para trás, e é só desta forma que elas – e também cada um de nós – poderão continuar adiante com suas próprias batalhas, memórias e expectativas. (Leandro Luz)

 

How to Talk to Girls at Parties | dir.: John Cameron Mitchell

Foto: Divulgação

Em toda a minha experiência com Neil Gaiman e suas adaptações cinematográficas (que não é pequena, visto que ele era meu autor favorito da adolescência), nenhuma história sua me decepcionou, nunca. Não foi dessa vez: “How To Talk to Girls at Parties” pode ter diversos defeitos pontuais, mas é prazeroso e divertido do começo ao fim, tendo uma energia e um ritmo capazes de conquistar até aqueles mais céticos quanto a seu estilo fantasioso. O filme vai muito além daquilo que é fornecido pelo curto conto de Gaiman, presente em “Coisas Frágeis”, expandindo o que foi apenas conceituado pelo autor: adolescentes punks da Inglaterra da década de 70 entrando em uma digníssima “festa estranha com gente esquisita” e tentando conversar com garotas. O que Gaiman não explica, ou deixa em aberto, o filme desenvolve, mas também não a ponto de termos eternos diálogos expositivos (mesmo que em alguns pontuais momentos eles ocorram). O encontro do punk, representado pelo protagonista Enn (Alex Sharp), com o universo maluco de uma comunidade que contém elementos extraterrestres bizarramente misturados com elementos de seitas religiosas é o que move esse filme, tanto visualmente quanto narrativamente. No âmbito visual, temos o contraste dos figurinos, entre o preto que domina quase que sozinho o mundo dos punks britânicos e a profusão de cores do grupo dos aliens, que se dividem em seis “categorias”, representadas cada uma por uma cor básica. A fotografia se esbalda nesse contraste e traz para nós códigos de cor muito simples, que, utilizados a favor da narrativa, nos fazem entender imediatamente a dinâmica de algumas cenas. No âmbito do roteiro, há a introdução de alguns bons símbolos e metáforas que nos guiam pelo filme: por exemplo, a constante comparação do movimento punk com um “vírus”, que se espalha e penetra as mentes alheias, e ajuda Zan a questionar os dogmas restritíssimos de sua família-comunidade. Sendo um eficiente representante do gênero “coming-of-age”, o filme abraça (um pouco intensamente demais) alguns clichês, mas nunca chega a se tornar convencional, pelos diálogos que beiram a insanidade completa, pelo humor (deveras britânico) que vem do nonsense e pelo carinho que tem pelos seus personagens, bem desenvolvidos e tridimensionais mesmo que sigam um arco bastante previsível. É um filme que eu gostaria de ter visto em minha adolescência, pois abarca o fantástico para dizer mensagens de tolerância ao estranho e de liberdade aos desejos mais íntimos e fora do comum. (Laura Batitucci)

 

Lake Bodom | Bodom dir.: Taneli Mustonen

Foto: Divulgação

Hábil ao exibir um perfil concreto e cuidadoso de suas protagonistas femininas, “Lake Bodom” é um filme de horror que revela lentamente suas camadas, correndo o risco de soar óbvio e desinteressante – o que de fato acontece em dado momento – ao longo do processo. A trama se passa no lago Bodom, na Finlândia, e se baseia em um caso real de assassinato ocorrido na década de 1960, quando quatro adolescentes foram atacados por um agressor que jamais foi descoberto. Atte (Santeri Helinheimo Mäntylä) e Elias (Mikael Gabriel) convidam duas colegas de classe para acampar. O primeiro está obcecado pela história do assassinato no lago (vida real e ficção já começam a se embaralhar a partir daqui), o segundo está mais interessado num final de semana repleto de sexo e curtição. Ida-Maria (Nelly Hirst-Gee) e Nora (Mimosa Willamo) aceitam aparentemente sem saber dos objetivos reais por trás do convite. O primeiro conflito, portanto, é delineado, e a partir do momento em que os quatro chegam ao destino final, as características de um slasher convencional são somadas à tensão que se estabelece entre os personagens. Até aqui a direção de Taneli Mustonen é consistente e consegue criar a atmosfera necessária para o tipo de filme que se propôs a fazer, e a trilha sonora assinada por Panu Aaltio também contribui para este objetivo, seguindo a tendência atual de alguns filmes do gênero ao se apropriar do emprego clássico de sintetizadores se espelhando em obras famosas da década de 1980 como “A Bruma Assassina” e “O Enigma de Outro Mundo” (só para citar dois monumentos dirigidos por John Carpenter). Infelizmente atmosfera não é tudo, e é justamente quando os jump scares e as situações improváveis dominam o segundo ato que perdemos um pouco do interesse pelo filme. Mustonen, ao lado do também roteirista Aleksi Hyvärinen, também inclui em sua trama discussões contemporâneas como a invasão de privacidade e o vazamento não consentido de fotos pessoais – a personagem principal supostamente teve suas fotos nuas tiradas sem o seu consentimento e vazadas para todo o seu círculo social – e a partir disso constrói um inesperado plot twist que nos conduz a um bom terceiro ato, que quase retoma o ritmo e o alto nível que vimos no começo. Com um pouco mais de personalidade, o grande vilão de “Lake Bodom” certamente voltaria a aterrorizar novos adolescentes em uma sequência, mas não acho que o filme tenha cacife para tal (apesar de não descartar um futuro remake hollywoodiano). Tradicionalista e inventivo ao mesmo tempo, esse exemplar de horror finlandês merece atenção pelo imaginário construído e pela forma como respeita e confere força às suas protagonistas. (Leandro Luz)

 

O Formidável | Le Redoutable dir.: Michel Hazanavicius

Foto: Divulgação

“Por que inventar o cinema falado e não dizer nada?”

Hazanavicius coloca na boca de seu personagem principal praticamente todas as coisas que ele gostaria de dizer ao espectador. A concepção do roteiro, portanto, gira em torno de uma disputa de egos entre seu criador e a imagem que ele efetivamente fabrica de Jean-Luc Godard. Os elementos de direção também corroboram essa estrutura, e os inúmeros artifícios concebidos por Godard em diversos de seus filmes na década de 1960 são utilizados aqui de maneira jocosa, o que imediatamente me afastou da concepção artística de “O Formidável”. Se em determinado momento, por exemplo, me peguei incomodado com o excesso de nudez envolvendo a atriz Stacy Martin, que interpreta Anne Wiazemsky com uma sensibilidade admirável, Hazanavicius logo insere uma cena onde os próprios personagens discursam sobre a nudez no Cinema (“se há justificativa no roteiro não vejo problema em ficar nua”). Uma pena, meu caro diretor e roteirista, você querer justificar algo pelo discurso e não pela própria construção narrativa. A quebra da quarta parede, personagens conscientes de sua materialização fictícia, diálogos que dizem uma coisa enquanto a legenda indica os pensamentos reais dos personagens por trás das palavras ditas, a metalinguagem onipresente, tudo é sarcástico e pouco me parece sincero. Louis Garrel representa um pouco da sinceridade que falta ao filme como um todo, e encarna um Godard tão divertido e pretensioso que quase nos esquecemos de fato que estamos diante de um ator com tanta personalidade. Apesar de todas essas questões, “O Formidável” é um filme agradável de acompanhar e tem um ritmo e uma estrutura circular que funcionam. A trama acompanha a execução, recepção e consequências da produção de “A Chinesa” e o relacionamento que Godard inicia neste processo com Wiazemsky, então protagonista do filme (aliás, sua autobiografia intitulada “Un An Après” serviu de base para o roteiro de “O Formidável”). Numa profusão de azul, vermelho e branco, por quase duas horas ficamos submersos (a propósito do Redoutable do título original) num panorama cômico e que pouco faz jus a um dos mais provocativos e controversos diretores da história do Cinema. (Leandro Luz)

Sair da versão mobile