"Tragam-me a cabeça de Carmen M." (2019) - Foto: Duas Mariola Filmes
"Tragam-me a cabeça de Carmen M." (2019) - Foto: Duas Mariola Filmes

“Tragam-me a Cabeça de Carmem M.”: O peso de um país caótico

Um delírio que procura refletir sobre o caos sócio-político em que o Brasil se encontra, buscando referências estéticas no tropicalismo e no surrealismo para combiná-las com a influência forte do cinema de Rogério Sganzerla (“O Bandido da Luz Vermelha”, “Sem Essa, Aranha!”), provavelmente o cineasta brasileiro que melhor soube representar o país imageticamente enquanto o regime militar era vigente.

Quase um média (a duração aproximada é de 60 minutos), o filme é dirigido por Felipe Bragança (premiado em Tiradentes com “A Fuga da Mulher Gorila”, em 2009) e a atriz portuguesa Catarina Wallenstein (“Um Amor de Perdição”, “Singularidades de uma Rapariga Loura”), que conseguiram tirar de toda essa mistura um filme com camadas complexas, mas sem hermetismos. Mesmo nos lugares de acesso mais fechado, o filme não afasta o público, muito graças à hipnotizante performance de Catarina.

Ela interpreta Ana, uma mulher que é encontrada desacordada por uma travesti, que a carrega para um quarto e a ajuda a se recuperar. Com fotografia assinada por Guilherme Tostes, o filme alterna entre sequências coloridas e preto e branco, como se cada parte representasse momentos de devaneio e realidade experimentados pela protagonista, que ensaia para estrelar uma espécie de musical em que interpretará Carmem Miranda. Porém, o limite entre tais esferas nunca fica claro e o contraste acentua a dimensão onírica em que todas as instâncias podem ou devem estar inseridas. Configura-se uma brincadeira metalinguística instigante – e da qual Helena Ignez participa brilhantemente, em uma cena em que (des)prepara Catarina para o seu grande ato.



Na verdade, o interessante de “Tragam-me” não é separar o que é do que não é. É um filme forte na maneira como nos atrai para dentro desse pesadelo do qual ainda não acordamos. E invocar a figura de Carmem Miranda (sendo ela alguém que carregou o país e seus referenciais culturais históricos em cima da cabeça — Bragança afirma que a ideia era que o filme existisse “dentro” do icônico turbante da artista) é de uma inventividade tremenda, além de jogar luz sobre a importância secular dela, não como diva, mas como fantasmagoria de uma brasilidade recalcada e incompreendida. 

Filme visto na Mostra Olhos Livres, da 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes.

Acompanhe a cobertura completa da 22ª Mostra de Cinema de Tiradentes no cinematório.