"Vice" (2018) - Foto: Annapurna Pictures/Divulgação
"Vice" (2018) - Foto: Annapurna Pictures/Divulgação

“Vice”: Nas entrelinhas da forma e do conteúdo

Existem várias maneiras de contar histórias. Especialmente quando se tem como ferramenta a ficção oferecendo certos teores à narrativa, seja esta verídica ou inverídica.

“Vice”, de Adam McKay, desponta como uma obra de amplas formas, aguçando nossa expectativa durante a totalidade da exibição, pois não conseguimos afirmar se representa um documentário ficcionalizado ou uma ficção documentada. Tem na base um hibridismo objetivando oferecer amplas críticas à Guerra ao Terror, ao passo que não é coeso ao administrar as doses do que é criado e do que é verdadeiro. De certa forma, as certezas que temos sobre a ficção estão escrachadas nas cenas sarcásticas de um típico humor norte-americano e, por que não, derivado do humor inglês de Monty Python. Já as certezas documentais, a meu ver, só transmitem a credibilidade definitiva através das cenas puramente textuais que surgem aqui e acolá na obra. Assim, tem-se um lado escrachado com um lado crítico difuso, porém, consistente, e de notável posicionamento político, como estrutura básica deste filme.

A história é descontínua, passado e presente em sincronia e uniformizados com coerência –  sejamos honestos, um belo trabalho de edição nesse sentido. Ademais, apresenta consideráveis intervenções de outras ordens como cortes para mostrar cenas de um narrador desconhecido, sequências de imagens – aparentemente – desconectadas explodindo em tela, inserção de diálogos esdrúxulos para enquadrar o sarcasmo antes de seguir com a mesma cena em termos mais sérios.



Dentre estas intervenções, uma que me agrada muito é a metafórica inclusão de imagens desconexas ou aparentemente pouco relevantes por alguns segundos. Esse jogo imagético testa nossa atenção e conhecimento a respeito do que a obra está tentando dizer minuciosamente. Outra intervenção de relevo é a presença do narrador “semi-observador”, se assim posso dizer, cuja identidade é revelada apenas no final do filme. Trata-se de uma peculiaridade importante porque traz ao espectador, desde o princípio, a seguinte indagação: “Afinal, a narração parte de um documentarista, de um pesquisador, de um cidadão norte-americano?” Ninguém efetivamente sabe. É interessante que se produza um filme com essa interrogação, porque, através desta estratégia, a história não é só contada pelo filme, mas há um terceiro indivíduo que nos conta a história do filme. Assim, a noção de realidade e ficção torna-se ainda mais confusa porque aquele narrador, que lhe acompanha durante toda a exibição, poderá ser um cineasta, um pesquisador dedicado ou um cidadão médio, e não se sabe qual nível de credibilidade deve ser dado a ele, exatamente por não ser possível, até certo ponto, descobrir sua efetiva identidade e intenção.

Sendo assim, o longa desponta como um verdadeiro póstumo de “Fahrenheit 11 de Setembro”(2004), de Michael Moore. Há em ambas as obras certo ponto de encontro e assimilação, mas “Vice” se destaca, pois dispersa a monotonia do documentário de Moore e acerta com mais vigor nas doses de ironia.

E é através de técnicas como as mencionadas que “Vice” se propõe a contar como Dick Cheney (Christian Bale) foi o responsável pela criação e manutenção da Guerra ao Terror norte-americana. No entanto, venho lembrar ao leitor que não é justo impor a Cheney tal responsabilidade e nem admirá-lo em toda sua torpeza, pois, ao traçar o perfil psicológico das outras personagens, percebe-se que, durante toda sua vida, Cheney padeceu de uma síndrome que acaba por nomear o filme: a “Síndrome do Vice”. Explico.

Dick Cheney, segundo o que se apresenta, teve uma trajetória vazia, retratado como indivíduo absolutamente apático, desinteressado em sua juventude e, consequentemente, imparcial. Sua chegada ao poder é apenas resultado das relações que escolheu construir através dos tempos, as quais são um reflexo de seu perfil egoísta e calculista, e que o impulsionaram a conquistar uma posição de destaque – principalmente a relação construída com seu mentor Donald Rumsfeld (Steve Carell). Não há nada de motivador em Dick: ele sempre teve o perfil perfeito para um verdadeiro vice. Logicamente, é inegável que suas últimas aparições públicas e decisões políticas foram feitas conforme o perfil de um veterano político, já acostumado a dar ordens, ainda que descabidas de bom senso, pois não há nada que a experiência não ensine; principalmente quando na presidência estava uma figura como George W. Bush, apresentada na narrativa como um indivíduo novato, sem pulso ou verve política. Cheney, sorrateira e serenamente, soube escolher quem podia lhe oferecer boas vantagens políticas, soube observar e aprender técnicas e táticas, pois seu potencial esteve sempre em ser um ótimo observador daqueles que detinham o poder da convicção. Sua personalidade apática elevava seu perfil político a cada conversa com precisas puxadas de lábios – e de lados – afinal, ele nunca se importou efetivamente de que lado estava, desde que estivesse vencendo e com seus privilégios mantidos.

A (oni)presença de sua esposa Lynne (Amy Adams), que indiscutivelmente imperava sobre o próprio marido, foi essencial para garantir que Dick se sobressaísse. É apresentada como dominadora e engenhosa, a ponto de impor um patamar de sucesso para o marido e não aceitar menos, sendo, inclusive, sua porta voz¹ quando o carisma de Dick se mostrava insuficiente. O casal possuía um relacionamento preciso, no qual ambos sabiam jogar, cada qual oferecendo o que tinha. Um hibridismo entre a extroversão e a introversão, envoltos por uma mesma necessidade: conquistas ambiciosas.

Tentando não me alongar muito mais, proponho repensar a cena final. Esta representa uma fala do ex-vice presidente à TV americana, com forte apelo emocional. Em seu discurso, busca convencer de que os fins justificaram todos os meios, ou seja, de que a proteção dos cidadãos dependia da instauração de uma guerra. Seu olhar compenetrado na câmera é uma demonstração de seu aprendizado na lida com o público, um apelo psicológico do olho no olho, a fim de que a troca entre o representante e o povo pareça mais convincente. Sobressai, dessa forma, o desejo de que todos os norte-americanos abram e ofereçam seus corações ao ex-vice – com problemas coronários e éticos – e à nação, seja através de sentimentos, seja de forma literal – como o fez o narrador e milhares de soldados norte-americanos.

Ademais, no balanço de xícaras e pires empilhados que a todo momento ameaça desabar, está a razão de ser da obra: mostrar o início, ápice e decadência de Dick Cheney, indicando que a sua vida pessoal e política, bem como a história dos Estados Unidos foram formadas a partir de equilíbrios frágeis e com atos e fatos empilhados até que o peso provocasse o desmoronamento.

Dick e Lynn Cheney tiveram um desmoronamento familiar profundo quando, ao final, preferiram o apoio político da ala conservadora da população a preservar a orientação sexual da filha Mary (Alisson Pill). Dick teve um desmoronamento político e de carreira desde o momento em que o país sob seu controle foi atingido por uma nação inimiga. E os Estados Unidos tiveram a manutenção e agravamento de um desastre ideológico no qual democratas e republicanos disputavam e disputam um modelo de Estado.

Afinal, havia muitas formas de fazer política e governar, a depender do povo, a depender de Dick Cheney, a depender de George Bush. E existem inúmeras maneiras de se contar uma história. Essas variáveis foram associadas em “Vice” tendo em vista que o cinema também é forma de dar voz a questões políticas. Por isso a obra é intrigante, intensa e provocante. 

¹ Interessante a crítica feminista personificada na postura de Lynne. O tradicionalismo da época permitiu apenas que ela depositasse seus sonhos no marido e se mantivesse conservadora, afirmando que “mulheres não eram permitidas a ocupar altos postos”. Neste estado de conformidade,  foi mestre em reforçar posturas misóginas – ressalto aqui a cena na qual fala sobre posturas feministas para um público conservador, criticando mulheres que estariam “queimando seus sutiãs”; essencial, também, a cena em que Dick, já Chefe de Gabinete, conversa com Lynne ao telefone e a ensina a fazer um simples macarrão, deixando transparecer a falta de vocação da esposa para afazeres domésticos. São vários, portanto, os indícios de que, a verdadeira inclinação de Lynne era por uma posição política.