"Sombras da Vida" (A Ghost Story, 2017) - Foto: Divulgação
"Sombras da Vida" (A Ghost Story, 2017) - Foto: Divulgação

“Sombras da Vida”: A angústia poética do horror

A conexão com um filme nem sempre é diretamente proporcional ao entusiasmo que ele provoca. Pensar dessa forma sobre o gênero horror, no entanto, pode causar estranheza. As pessoas que conheço, e que simpatizam com o gênero, julgam melhores os filmes embebidos em jump scares, no sentido de que, quanto mais, melhor.

É um tanto quanto nessa expectativa que “Sombras da Vida” (A Ghost Story, EUA, 2017), de David Lowery, apresenta-se. Quando me deparei com o filme, cujo pôster é um fantasma em cenário sombrio, nunca imaginei que terminaria de vê-lo ancorada pelo sentimento de angústia.

O filme vem com a proposta de um drama, um terror romantizado (se assim posso dizer, tendo em vista que não encontrei nenhum gênero cinematográfico suficiente para abarcá-lo). É composto por romance, drama e terror intrínsecos e indissociáveis. Há essa constante sensação, um tanto quanto agridoce, a qual considero responsável por estabelecer a conexão com o espectador .



O filme todo, praticamente, acontece em uma única locação na qual reside um personagem (Casey Affleck) vestido com um lençol branco e furado na região dos olhos. São 92 minutos de cenas corridas nesse contexto, com pontuais desvios de ações mais enérgicas, mas majoritariamente, uma monotonia constante e absorta.

Do lado de fora da tela, a sensação é de inconveniência. Todo o filme parece indicar o espectador como “fantasma do próprio fantasma”, inconvenientemente espiando por detrás da cortina enquanto a inominada assombração perambula por entre cômodos. E quanto mais o filme caminha, mais estreita e aguçada se torna a curiosidade do espectador. Sem perceber, nós começamos a incorporar o que o fantasma está sentindo.

O mais irônico é ser possível sentir as mudanças dos estados de “espírito” do personagem principal, ainda que ele não possua face expressiva visível. Estive emocionada, angustiada, curiosa e envolvida com um lençol branco e furado, fisicamente inexpressivo. Essa constatação desde logo me extasiou e, aqui, posso reafirmar algo que costumo dizer: não é necessário o MUITO, quando se tem uma boa ideia sendo bem executada.

Interessante que, nesta altura, provavelmente já restará esquecido tratar-se de um filme de horror, pois o drama é muito bem construído em cima da angústia. O horror, por outro lado, não deixa de ser presente. Ver as coisas da perspectiva do possível “ente maligno” é bastante incomum na tradição do gênero. O fantasma se porta como o esperado, ele não é um ente espiritual diferente e “bom”; na realidade, ele tem o perfil do ente que assombra quem importuna seu ambiente. A diferença, no entanto, está na relação construída entre o espectador e o próprio personagem: deixa de parecer assustador, porque o filme permite uma conexão íntima com a história do ente espiritual.

Assim, o horror assume características de  dramático e romântico, por meio de um fantasma que, mesmo carente de expressões físicas, é capaz de despertar sensações. No entanto, há uma ponta solta nesse contexto, já que não é possível saber com exatidão qual tipo de sensação deve ser sentida. Isso ocorre porque a falta da expressividade no cinema deixa de prescrever um caminho linear ao despertar de sentimentos de quem assiste a um filme. O fantasma é basicamente uma tela em branco, a partir da qual o espectador espelhará suas livres emoções e construirá o aspecto emocional baseado em suas experiências ou capacidades emotivas.

A margem interpretativa de “Sombras da Vida”, para além do seu final, é feita durante toda a narrativa: o diretor não exige uma determinada sensação do público, mas oferece a liberdade de adivinhar os sentimentos da personagem e permite que, individualmente, cada espectador se atreva a sentir e a desafiar os próprios sentimentos.

Por fim, não poderia deixar de me referir ao núcleo poético da trama, o qual torna nítidas questões subjetivas relacionadas à memória e ao tempo. Mostra como a passagem do tempo é específica a cada ser; como os indivíduos se apegam a coisas e pessoas que transitaram por suas vidas e que os  completaram como seres humanos; e como a liberdade dependerá do bom convívio e da palavra do outro, de modo que, a paz, e consequente liberdade espiritual, ocorrerão apenas se todas as questões puramente humanas estiverem resolvidas. ■

Assista a “Sombras da Vida” no iTunes