"Rafiki" (2018) - Foto: Olhar Distribuição/Divulgação
"Rafiki" (2018) - Foto: Olhar Distribuição/Divulgação

“Rafiki”: Amor, dor e política

“Rafiki” chega aos cinemas brasileiros em agosto, exatamente no mês da visibilidade lésbica, e com uma trajetória que chama mais a atenção do que seu lindo visual com cores neon e tons pastel. Ao estrear em Cannes, na Mostra Un Certain Regard de 2018, já deixava sua marca por ser o primeiro filme de uma diretora queniana a ser exibido na programação do festival. Adicione a isso o fato de que, por se tratar de uma história LGBT, o longa foi proibido em sua terra natal. O Quênia, assim como outros mais de 30 países do continente africano, ainda criminaliza relações homossexuais e, em sua censura à obra, o governo alegou que o filme “promove o lesbianismo”.

Embora a diretora Wanuri Kahiu tenha conseguido na justiça o direito de exibi-lo durante sete dias para que ele se tornasse elegível para uma pré-indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro — uma rápida oportunidade para que os quenianos e quenianas pudessem vê-lo — fiquei pensando em como essa decisão conservadora e autoritária do governo faz parte de um círculo vicioso de homofobia, pois quanto menos representatividade, mais repressão e falta de empatia. Além disso, me intrigou que o longa para nós, do Brasil, pode parecer simples e convencional em sua forma e narrativa, mas em outros cantos do mundo é provocativo e revolucionário, apenas por colocar o amor entre duas jovens mulheres negras em primeiro plano.

Dizer do “simples e convencional” aqui não é num sentido que o diminui, mas apenas para evidenciar que trata-se de uma história que se desenvolve sem muito aprofundamento das questões e dramas colocados e com bases numa certa fórmula já conhecida de amor romântico proibido, em que as personagens apaixonadas são pertencentes a famílias rivais e são “vigiadas” por olhares alheios. No caso, Kena (Samantha Mugatsia) e Ziki (Sheila Munyiva) são filhas de adversários políticos, pois seus pais são candidatos à prefeitura. E, claro, torna-se um relacionamento proibido também por ser lésbico, num contexto duramente opressor. Elas tentam vivenciar às escondidas o desejo de estarem juntas, sonham com as possibilidades futuras de libertação, e tudo isso nos faz lembrar de “Romeu e Julieta”, por exemplo.



Há que se destacar como somos imersos na magia terna e, ao mesmo tempo, sensual do romance que se inicia como uma fagulha e cresce em intensidade. É pelo ponto de vista de Kena, que circula apenas com outros meninos e se veste em estilo tomboy, que acompanhamos o desenrolar dos acontecimentos. E, portanto, a partir do momento em que ela conhece Ziki, os planos do filme ficam cada vez mais rosados, especialmente nos momentos em que estão envolvidas apenas uma com a outra. Ziki, ilumina o ambiente, tem estilo moderno, mas mais comumente lido como feminino pelo uso de vestidos, estampas florais, maquiagem em tons de rosa e dreadlocks multicoloridos (lindos!) em candy colors. No entanto, aos poucos, o filme vai perdendo seu jeito de algodão doce para dar lugar à crueza do ódio que irrompe das pessoas preconceituosas e violentas. Kena e Ziki sofrem consequências graves ao serem descobertas, porém é interessante observar como só a pressuposição já é motivo de homofobia, fundamentada, principalmente, nas tradições religiosas daquela comunidade de classe média.

Essa violência é um ruptura na bolha criada pelas duas protagonistas — materializada na kombi delicadamente decorada em que realizam seus encontros protegidos — e faz contraste com a maneira cheia de cores, texturas e beleza com o qual a diretora filma os espaços e as pessoas. Esse contraste também se percebe frente às violências cotidianas e mais sutis sofridas principalmente pelas mulheres. E vale destacar esse cuidado estético também, já que se traduz em músicas marcantes, cenários, figurinos e objetos de cena muito próprios, que constroem um retrato vibrante da cultura africana, muitas vezes negado pela cinematografia hegemônica.