"Morto Não Fala" (2019) - Foto: Pagu Pictures/Divulgação
Foto: Pagu Pictures/Divulgação

“Morto Não Fala”: paternalismo em estado de putrefação

Se o público ainda não está convencido de que o cinema brasileiro vive um excelente momento no cinema de gênero, “Morto Não Fala” não deixará mais dúvidas. O filme é mais um ótimo exemplar da atual safra de horror nacional, que só nos últimos dois anos já nos brindou com títulos como “As Boas Maneiras”, “O Animal Cordial”, “A Noite Amarela”, “Terra e Luz”, “A Mata Negra”, “Nó do Diabo”, só para citar alguns.

O diretor de “Morto Não Fala”, Denisson Ramalho, está no ramo há algum tempo já, embora este seja o primeiro longa que ele dirige sozinho. Antes foi diretor-assistente de ninguém menos que José Mojica Marins em “Encarnação do Demônio” (2008) – filme, aliás, que pode ser considerado uma espécie de ponte intergeracional do horror brasileiro. Iniciando a carreira com curtas (são dele os premiados “Nocturnu”, “Amor Só de Mãe” e “Ninjas”), Ramalho também dirigiu um episódio da antologia “ABC da Morte 2” (2014) e trabalhou nas séries “Supermax” e “Carcereiros”, antes de lançar o novo filme.

“Morto Não Fala” tem uma proposta estética ungida com evidentes heranças de Zé do Caixão e Dario Argento, mas também trabalha com o gore de um cinema de horror mais recente, encontrado em produções asiáticas (Takashi Miike, Hideo Nakata) e no chamado torture porn norte-americano. O resultado é esse filme com trama sobrenatural e cenas que apresentam corpos ensanguentados e esquartejados, mais alguns bons jump scares.



Ramalho domina muito bem os códigos do gênero, sem necessariamente fazer uma releitura deles ou buscar o que parte da crítica tem chamado de “pós-horror”, que seria uma “nova” tendência de explorar um terror mais íntimo, com abordagens narrativas mais dramáticas e contemplativas, reconhecendo e ao mesmo tempo ressignificando elementos historicamente ligados ao horror.

As habilidades de Ramalho e sua equipe, da fotografia à direção de arte, são inegáveis. Há cenas que fazem os olhos brilharem de tão bonitas, mas que também deixam os pelos do braço arrepiados e o estômago revirado. O ápice é uma elaborada sequência que envolve linhas de cerol, mas ao longo de todo o filme você provavelmente vai se assustar e se enojar outras vezes, não duvide disso.

Ao mesmo tempo, porém, o público poderá refletir sobre um tema que corre paralelo à maldição desencadeada por Stênio (personagem de Daniel de Oliveira), quando ele é surpreendido por uma revelação sobre sua própria vida enquanto conversa com um dos cadáveres que recebe no necrotério onde trabalha.

Esse tema é a fragilidade da figura paterna e masculina diante da incapacidade de cumprir suas obrigações socialmente impostas. Nesse sentido, “Morto Não Fala” se aproxima bastante de “A Sombra do Pai”, de Gabriela Amaral Almeida. É curioso que ambos os filmes tenham sido realizados quase que simultaneamente e chegado aos cinemas com uma diferença de alguns meses. Assim como Ramalho, Gabriela (que também assina “O Animal Cordial”) trabalha com o sobrenatural e diálogos com os mortos em seu longa. Porém, seu estilo e ritmo diferem bastante.

Não há nisso qualquer tipo de comparação valorativa, muito pelo contrário. Colocar os dois filmes lado a lado só valoriza o horror brasileiro por possibilitar perceber que dois cineastas acionam chaves diferentes para tratar de um tema em comum que é relevante e urgente. É necessário e preciso questionar o paternalismo (e o patriarcado, e o machismo) e dissipar o fedor que ele exala.

Em “Morto Não Fala” isso ocorre por meio da paranoia que toma conta de Stênio, um homem, a princípio, discreto e combalido que acaba recorrendo à violência (doméstica) para superar o trauma de não conseguir ser o macho provedor (da tradicional família brasileira). É, portanto, significativo que, em seu ofício, ele direta e literalmente dialogue com a putrefação da sociedade (o IML como microcosmo tétrico do país) e também se veja preso numa das gavetas do necrotério, afundado na culpa e na angústia da “vida como ela é”.

Há, na verdade, um mal-estar geral no filme que se espalha como epidemia. A esposa (Fabíula Nascimento), o dono da mercearia (Marco Ricca), a filha dele (Bianca Comparato), as crianças (Cauã Martins, Annalara Prates). Há um sofrimento inequívoco em todos eles. Em todos nós.

“Morto Não Fala”, tal qual “A Sombra do Pai”, é um filme em que o além tem duplo sentido: é uma força hiperfísica e um fenômeno social. É um filme que, ao sutilmente complexificar suas entrelinhas e contorcer nossas entranhas, consegue superar o eventual desgaste de seu dispositivo (falar com os mortos) e de alguns esquemas que fazem lembrar filmes não tão bons quanto.

MORTO NÃO FALA (2018, Brasil). Direção: Denisson Ramalho; Roteiro: Denisson Ramalho, Cláudia Jouvin (baseado no conto de Marco de Castro); Produção: Guel Arraes; Fotografia: André Faccioli; Montagem: Jair Peres; Música: Paulo Beto; Com: Daniel de Oliveira, Fabíula Nascimento, Bianca Comparato, Marco Ricca, Cauã Martins, Annalara Prates; Estúdios: Casa de Cinema de Porto Alegre, Globo Filmes, Canal Brasil; Distribuição: Pagu Pictures. 110 min