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Diretor Benh Zeitlin conta como reimaginou a história de Peter Pan em “Wendy” – Entrevista Exclusiva!

Devin France e o diretor Benh Zeitlin no set de "Wendy". Foto de Jess Pinkham. © 2019 Twentieth Century Fox Film Corporation

Devin France e o diretor Benh Zeitlin no set de WENDY. Foto de Jess Pinkham. © 2019 Twentieth Century Fox Film Corporation.

Foi em 2012 que Benh Zeitlin chamou a atenção com seu primeiro longa, “Indomável Sonhadora”. O diretor norte-americano, na época com apenas 29 anos, colecionou uma série de prêmios com o filme, entre eles o troféu Câmera de Ouro no Festival de Cannes e o Grande Prêmio do Júri no Festival de Sundance. Logo em sua estreia, o jovem cineasta também foi indicado a duas estatuetas no Oscar: Melhor Direção e Melhor Roteiro Adaptado, ao lado de Lucy Alibar, autora do livro em que o filme é baseado.

A crítica exaltou “Indomável Sonhadora” por seu universo infantil reimaginado. A história se passa em uma comunidade esquecida, no sul da Louisiana, nos Estados Unidos, onde uma garota de seis anos tem de lutar para salvar o pai doente e sua casa inundada quando uma tempestade provoca uma enchente. E a visão lúdica da criança é fundamental para que ela supere todas as adversidades. A protagonista Quvenzhané Wallis também foi indicada ao Oscar e se tornou à época a mais jovem atriz a concorrer ao prêmio.

As habilidades de Zeitlin em trabalhar com um elenco infantil e ressignificar o imaginário de histórias narradas e vivenciadas por crianças estão de volta em seu segundo longa, “Wendy”. No entanto, diferente de “Indomável Sonhadora”, desta vez ele partiu de um texto clássico para oferecer uma nova perspectiva ao público. Trabalhando no roteiro ao lado da irmã, Eliza Zeitlin, ele nos apresenta outro ponto de vista sobre o universo de Peter Pan, criado pelo escritor e dramaturgo J.M. Barrie, em 1904. Agora, como o título já indica, quem narra e participa de todas as aventuras na Terra do Nunca é Wendy Darling, interpretada também por uma jovem estreante atriz, Devin France. Outra novidade é que Peter é vivido pela primeira vez no cinema por um ator negro: o garoto Yashua Mack.

“Wendy” teve sua estreia mundial no Festival de Sundance de 2020, em janeiro, e estava pronto para ser lançado no circuito comercial, quando a pandemia de COVID-19 obrigou cinemas do mundo todo a fecharem as portas. O filme chegou a ficar algumas semanas em cartaz nos Estados Unidos, mas no Brasil acabou sendo lançado diretamente no streaming, no final de maio.

Aqui no cinematório, nós não deixamos o lançamento passar batido: além da crítica de Kel Gomes, você lê a seguir uma entrevista exclusiva que fizemos com Benh Zeitlin. Ele nos contou vários detalhes e curiosidades sobre a origem do projeto, os bastidores das filmagens e o trabalho com as crianças. E claro, falou sobre as histórias que marcaram sua infância, especialmente a de Peter Pan.

Em primeiro lugar, muito obrigado pela entrevista, Benh! E parabéns pelo filme, que nós do cinematório adoramos. Vamos começar bem do início: quando surge a vontade de fazer este filme e levar para a tela os personagens de J.M. Barrie desta forma?

Pelo que me lembro, Peter (Pan) sempre foi o deus da juventude. Eu o amava, eu o temia, ele me levou a travessuras, à liberdade e aventuras, mas também vi nele um caminho de solidão inimaginável. Ele é um espírito com o qual toda criança tem que lutar enquanto se move em direção ao terror da vida adulta. Para mim, as questões mais difíceis sobre como envelhecer e como viver livre estão entrelaçadas em seu mito. E desde crianças, eu e minha irmã Eliza sabíamos que um dia haveríamos de contar a nossa experiência pessoal com essa história.

Tanto em “Wendy” quanto em “Indomável Sonhadora” você trabalhou com crianças no elenco. Qual é o maior desafio na direção de crianças, principalmente quando elas são protagonistas?

Os desafios são imensos, mas um pouco chatos (risos). Obviamente, você lida com a energia infantil, o tempo próprio delas, a motivação e a segurança. Mas, para mim, o trabalho em colaboração com a imaginação de uma criança supera tudo isso. Elas pensam de maneiras que não são estruturadas ou disciplinadas para se ajustarem ao que é esperado delas. Ao buscar por algo em uma cena que pareça selvagem e verdadeiro, muitas vezes basta olhar para seu ator ou atriz e perguntar: “o que você faria nessa situação?”

Da esquerda para a direita: o diretor de fotografia Sturlen Brandth Grovlen, o diretor Benh Zeitlin, Devin France, Krzysztof Meyn, Gage Naquin e Ahmad Cage no set de “Wendy”. Foto de Mary Cybulski. © 2020 Twentieth Century Fox Film Corporation. Todos os direitos reservados.

Como você chegou à Devin France? Você já tinha em mente desde o início que queria o protagonismo feminino?

Sim, desde o início do projeto sabíamos que era preciso reimaginar Wendy, que historicamente é uma garota dócil que cuida dos Garotos Perdidos e é deixada à margem enquanto eles têm todas as aventuras. Devin France encarnou  muito bem nossa Wendy, que é tão corajosa e selvagem quanto Peter e os garotos. Ela também trouxe um coração e uma sabedoria ao papel que, espero, mude para sempre a maneira como pensamos a maternidade nesta história. No mundo de Wendy, a maternidade é o poder supremo.

E escalar Yashua Mack para viver Peter Pan?

Já pensávamos desde o início que Peter seria da Terra do Nunca, em oposição à ideia do garoto britânico que de alguma forma acabou lá. Depois que começamos a trabalhar na Ilha de Montserrat, Antígua e Barbuda, focamos em encontrar alguém da região para interpretá-lo. Foi um grande desafio encontrar uma criança capaz de transitar nessas paisagens naturais muito desafiadoras com a facilidade que você teria se tivesse vivido lá por 100 anos. Mas Yashua, que cresceu em uma comunidade Rastafari, estava acostumado a usar a floresta como seu playground e trouxe isso para o filme, além de seu incrível talento de ator para o papel.

Quanto aos gêmeos Gace e Gavin Naquin, como foi o casting? Como vocês chegaram ao conceito do garoto-duplo para nos surpreender mais uma vez com essa nova versão da história de J.M. Barrie?

Eu não quero dar essa resposta assim facilmente! Devo dizer que procuramos especificamente por crianças profundamente conectadas ao mundo natural. Gavin e Gage são de uma família de caçadores e pescadores de Cajun e são capazes de pegar um jacaré do pântano com a palma da mão.

E como foi a escolha das locações? Houve algum desafio em particular quanto a isso?

O filme foi quase totalmente reescrito depois que chegamos e começamos a explorar a Ilha de Montserrat. Lá tem um vulcão ativo que se tornou o centro da nossa mitologia. Também usamos as ilhas vizinhas de Antígua e Barbuda para as as cenas nas águas e cavernas. Não queríamos filmar a região da mesma maneira antisséptica que você vê na indústria do turismo, queríamos lugares impressionantes e que não apresentassem evidências de interferência humana. Muitas vezes, a razão pela qual as paisagens se apresentavam assim, intocadas, é por terem difícil acesso. Era quase impossível chegar lá, o que pode dar a vocês uma ideia de como foram as filmagens. Era como planejar uma expedição diariamente.

Yashua Mack, Devin France, Gage Naquin, Gavin Naquin, Romyri Ross, Ahmad Cage e Krzysztof Meyn no filme “Wendy”. Foto de Jess Pinkham. © 2020 Twentieth Century Fox Film Corporation. Todos os direitos reservados.

Apesar do elenco infantil, os seus dois filmes não são exatamente infantis. Há temas complexos sendo trabalhados neles. Na verdade, “Wendy” talvez seja a versão mais adulta da história que já vimos, bem mais do que Steven Spielberg fez em “Hook”, por exemplo. Gostaríamos que você nos dissesse como os atores mirins entenderam esses temas mais profundos e qual resposta você costuma receber das crianças que assistem aos seus filmes?

Na verdade, eu acho que as crianças geralmente entendem esse filme melhor do que os adultos. Para os adultos que entendem, sua criança interior está viva e firme e forte! (risos) Acho que subestimamos a capacidade das crianças de entenderem temas complicados ou sombrios. Muitas vezes, as cenas favoritas delas durante as filmagens eram as mais assustadoras, aquelas que você pensaria que elas resistiriam em fazer. Eu espero que o filme seja uma experiência compartilhada entre crianças e adultos, que pensem juntos em todas as complexidades que envolvem o crescer, a partir de ambos os pontos de vista.

Como você tem visto a recente tendência dos grandes estúdios de fazerem versões live-action de animações clássicas e contos de fadas?

Honestamente, eu estava fazendo “Wendy” durante o tempo todo em que esses filmes foram lançados e quase não vi nenhum deles. Eu realmente não vejo “Wendy” como parte desse cânone, pois é uma história totalmente nova que deriva do conto clássico. Devo dizer que acho perturbador ver filmes sobre a natureza que são inteiramente artificiais. E sinto que cada vez mais resguardamos as crianças do contato com o próprio planeta, o que traz consequências perigosas. “Wendy” é um filme sobre crianças na natureza de verdade, sujeira de verdade, água de verdade, cavernas, vulcões! Vamos libertá-las!

E de todas as versões da história de Peter Pan já filmadas, qual é a sua favorita?

Provavelmente a versão filmada do musical estrelado por Mary Martin. Esse foi o VHS que eu tinha em minha casa e que foi assistido 1.000 vezes.

Para finalizarmos: uma das mensagens importantes que o filme apresenta é a importância das histórias, as que nos são contadas e as nossas próprias, de vida, e a relação entre elas. Quais outros personagens ou narrativas clássicas infanto-juvenis foram/são importantes para você? Gostaria de adaptar alguma outra dessas histórias?

Há tantas! “Robin Hood”, “A Pequena Sereia”, “O Vento nos Salgueiros”… Eu poderia continuar citando títulos para sempre. Eu sempre amei mitologia e cresci em uma casa de pais folcloristas (meu pai cresceu em São Paulo!). Então, mitologias e esses contos atemporais sempre foram uma linguagem pela qual eu entendi o mundo. Acho que, no momento, minha cabeça está mais inclinada em direção ao realismo, mas eu não descarto voltar a essas grandes histórias. Acredito que reimaginar constantemente os mitos para um novo mundo é uma tarefa vital.

Ahmad Cage, Yashua Mack, Gage Naquin, Devin France, Krzysztof Meyn, Gavin Naquin e Romyri Ross em “Wendy”. Cortesia da Searchlight Pictures. © 2019 Twentieth Century Fox Film Corporation. Todos os direitos reservados
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