Trilogia “Rua do Medo”: overdose de referências enfraquece terror da Netflix

A forma como o espectador responde aos filmes da trilogia “Rua do Medo” está diretamente ligada à sua idade e à afinidade que possui com o cinema de horror. Baseada na série de livros de R. L. Stine, destinada ao público adolescente, a produção é fortemente inspirada nos filmes slasher dos anos 70, 80 e 90. Então, sim: chegou o momento em que você, que viu “Pânico” em 1996, irá se deparar com uma homenagem à icônica cena em que Drew Barrymore é atacada pelo assassino Ghost Face. E não há nada de cringe em reconhecer isso.

O grande problema de “Rua do Medo”, especialmente da primeira parte, não é ser constituído de referências, mas sim o uso que a diretora Leigh Janiak faz delas. Bem diferente de Wes Craven, que em “Pânico” usa o recurso metalinguístico para satirizar as convenções do gênero e, ao mesmo tempo, comentar o próprio filme, Janiak parece inserir as referências apenas “porque sim”, como se seu objetivo fosse fazer não um filme, mas um game para os caçadores de easter eggs do YouTube.

De novo, usar referências não é o problema. Eu mesmo adoro quando percebo uma enquanto assisto a um filme ou a descubro posteriormente. O que atrapalha “Rua do Medo” é as utilizar não como estratégia narrativa, mas como mero exploitation do gênero. Desse modo, uma pessoa que está começando a ver filmes de horror agora talvez até se divirta e se envolva com o que lhe é apresentado como novidade. Mas se ela já é iniciada e viu produções de várias épocas, a trilogia pode perder muito do interesse, pois a sensação é a de comer marmita requentada. Tudo aquilo já foi feito antes – e melhor.



Na verdade, devo me autocorrigir: algo que Janiak e os roteiristas Phil Graziadei e Kate Trefry trazem de novo em “Rua do Medo” e que nós não víamos (ao menos não explicitamente) nos filmes de terror dos anos 1990, para citar a época mais recente retratada na trilogia, é o relacionamento lésbico. A base de toda a trama é o namoro das duas personagens principais, Deena (Kiana Madeira) e Sam (Olivia Scott Welch). A relação delas é assumida abertamente, coisa que até bem pouco tempo atrás seria apenas sugerida em uma produção mainstream como essa, que começou a ser desenvolvida para um grande estúdio (a finada 20th Century Fox) e foi adquirida pela Netflix. Então, é um avanço que precisa ser aplaudido e levado em consideração.

E alguns dos melhores momentos de “Rua do Medo” são mesmo de Deena e Sam. Não na primeira parte, que não passa de um terror pueril com pouca substância e excesso de jump scares. O romance delas ganha peso mesmo é no terceiro filme, quando retornamos a 1666 e descobrimos, enfim, o mistério por trás da maldição de Sarah Fier que assombra os moradores de Shadyside. Em dado momento da conclusão, há um belo e forte diálogo entre as personagens principais que não só é uma declaração de amor, como também um posicionamento contundente pela liberdade das pessoas LBGTQIA+ serem, viverem e amarem como elas quiserem, sem perseguições ou julgamentos.

"Rua do Medo: 1994 - Parte 1" (Fear Street: 1994, 2021), de Leigh Janiak - Divulgação
“Rua do Medo: 1994 – Parte 1” (Fear Street: 1994, 2021), de Leigh Janiak – Divulgação

Enquanto entendemos o “medo” do título como representação da lesbofobia, a trilogia “Rua do Medo” se torna algo mais que uma simples franquia de horror nostálgica. Já quando os filmes investem apenas na fabricação de sustos e na exposição da violência, o medo que trazem ou tentam trazer encontra muitas dificuldades para convencer.

Aliás, cabe comentar que as cenas de assassinato são brutais e particularmente gráficas quando mulheres são as vítimas. É algo de certo modo surpreendente de se constatar posto que uma mulher está na direção. Não é que ela não deva ou não possa carregar na violência. Ela deve e pode, quando quiser. Mas nós devemos e podemos questionar o modo como ela filma essa violência contra corpos femininos — um ponto comum de tensão na análise de filmes de horror, a grande maioria dirigidos por homens. Há uma cena, por exemplo, em que uma personagem recebe contínuos golpes de machado no peito, sem que a câmera se mova, em um plano de duração considerável. É uma cena aparentemente feita pelo gore, mas uma análise semiótica pode revelar que o grafismo dessas imagens é problemático. E não parece, ao menos a princípio, que a diretora escolheu filmar daquele modo com um ponta de vista crítico. Numa primeira leitura, soa apenas como (mais uma) imitação.

Janiak é mais bem-sucedida nos momentos em que, mesmo emulando estilos de diferentes tipos de filmes de terror, consegue fazer a narrativa fluir e nos permite conhecer mais suas personagens. Daí a parte dois, situada em 1978 (em um acampamento à la Crystal Lake, de “Sexta-Feira 13”), posicionar-se acima das outras duas. Até o referencial fílmico é menos forçado aqui, embora Stephen King continue muito presente (o nome do autor é verbalizado inclusive). Curiosamente, esse é o único filme da trilogia em que o relacionamento entre Deena e Sam não está no centro da história. Porém, há na relação entre as irmãs Ziggy (Sadie Sink, a Max de “Stranger Things”) e Cindy (Emily Rudd) uma verdade muito natural. O filme funciona tão bem com as duas que quase poderia ser destacado da trilogia e visto sozinho.

"Rua do Medo: 1978 - Parte 2" (Fear Street 1978, 2021), de Leigh Janiak - Divulgação
“Rua do Medo: 1978 – Parte 2” (Fear Street 1978, 2021), de Leigh Janiak – Divulgação

A terceira parte também começa indo por um caminho mais sóbrio e bem amarrado, como se fosse uma história medieval sobre bruxaria. O uso do gore ganha uma conotação mais macabra, como na cena das crianças na igreja. E podemos traçar um paralelo interessante entre o obscurantismo inquisitório e a incriminação por meio de fake news. Porém, tão logo a verdade sobre Sarah Fier é desvelada, somos levados de volta a 1994 para a conclusão da trama inicial. E aí volta também o terror Danoninho e hipercolorido, com os personagens novamente traçando um plano digno da turma do Scooby-Doo para dar cabo dos monstros e encerrar a maldição de vez. Aqui, a trilogia também abre mão de representar a perseguição a Deena e Sam de maneira mais ampla para individualizar o problema em um só vilão, quando sabemos que ele representa apenas um extrato da nossa sociedade.

Sobre a trilha sonora, cabe uma observação: ainda que os artistas e as músicas sejam de qualidade, a impressão que se tem é a de que o primeiro filme é acompanhado não por uma trilha, mas por uma playlist das “mais tocadas” do Spotify e que os personagens pulam de faixa em faixa a cada mudança de cena. Fica a dúvida até mesmo se os produtores não tinham dinheiro para pagar os direitos autorais, já que utilizam no máximo uns 30 segundos de cada canção. Enfim, na era dos filmes e séries “de algoritmo”, em que as preferências e o saudosismo do “usuário” definem temas, estilos, cores e formas, a parte musical não ficaria de fora.

A trilogia “Rua do Medo” acerta na escolha do elenco e em valorizar a relação homoafetiva principal. Se vista como um único grande filme de terror, funciona melhor quando não se resume a enfileirar jump scares, referências a clássicos do gênero e clichês de histórias adolescentes. Quando se livra dessas amarras narrativas, a trilogia até mostra que possui vitalidade e consegue caminhar sozinha. Porém, não a tempo de escapar e sobreviver aos vários problemas que a perseguem desde o início. ■

Nota:

TRILOGIA RUA DO MEDO (Fear Street – 1994, 1978 & 1666, 2021, EUA). Direção: Leigh Janiak; Roteiro: Leigh Janiak, Phil Graziadei e Kate Trefry (baseado na série de livros de R.L. Stine); Produção: Peter Chernin, David Ready, Jenno Topping; Fotografia: Caleb Heymann; Montagem: Rachel Goodlett Katz; Música: Marco Beltrami, Anna Drubich e Marcus Trumpp; Com: Kiana Madeira, Olivia Scott Welch, Benjamin Flores Jr., Julia Rehwald, Matthew Zuk, Sadie Sink, Emily Rudd, Gillian Jacobs, Elizabeth Scopel, Darrell Britt-Gibson; Estúdio: Chernin Entertainment; Distribuição: Netflix. 107 min, 109 min, 114 min.

"Rua do Medo: 1666 - Parte 3" (Fear Street 1666, 2021), de Leigh Janiak - Divulgação
“Rua do Medo: 1666 – Parte 3” (Fear Street 1666, 2021), de Leigh Janiak – Divulgação