“Cry Macho” desfruta da paciência que o envelhecimento traz a Clint Eastwood

por Felipe Galeno, especial para o cinematório

Hollywood nunca lidou bem com o envelhecimento de seus grandes cineastas. Ao olharmos, por exemplo, para o reconhecimento de maior “prestígio” na indústria, o prêmio de Melhor Diretor no Oscar, apenas dois dos 30 nomes indicados nos últimos cinco anos tinham mais de 65 anos quando receberam a nomeação. Para Clint Eastwood, porém, essa regra implícita de Hollywood nunca importou muito. Se, no início dos anos 90, o clima de despedida que o ator e diretor imprimiu em seu aclamado “Os Imperdoáveis” (1993) poderia parecer o indício de uma aposentadoria iminente, as três décadas seguintes viriam a mostrar que as aparências enganavam. Eastwood continuou prolífico e em plena atividade. Agora, aos 91 anos de idade, ele inaugura a fase 2020 de sua carreira com dupla função em “Cry Macho: O Caminho para a Redenção”, drama dirigido e estrelado pelo nonagenário.

Sua indisposição em pendurar as chuteiras nunca significou, entretanto, que o ator e diretor não tem consciência de sua velhice. Como seria inevitável para um figurão cujo rosto ficou eternizado como ícone na mitologia do cinema americano, Eastwood sempre olhou para si mesmo e para sua própria imagem no cinema. Foi, portanto, natural que o seu próprio envelhecimento tenha se tornado um recorrente tema de suas produções. Com “Cry Macho” não é diferente: o protagonista Mike Milo, interpretado por Clint, é a todo tempo lembrado — por outros ou por seu próprio cansaço — de sua idade avançada, o que acaba virando um fator central para o jeito como o filme o enxerga.

Milo é um peão de rodeio aposentado que recebe a inusitada tarefa de ir ao México para buscar Rafo (Eduardo Minett), o rebelde filho de seu ex-patrão, e trazê-lo ao Texas. É uma missão que remete à trama de algo como um grande western clássico, e a profunda relação do cineasta com o gênero o leva a uma estrutura de fato próxima a de um faroeste. Ainda assim, sua narrativa passa longe de qualquer ideia de grandiosidade que essa alusão possa indicar. Todo o senso de importância ou fascínio geralmente associado a esse tipo de narrativa desaparece e é absorvido por um despojamento que se manifesta tanto tonal quanto formalmente. Os planos, fotografados por Ben Davis (em sua primeira colaboração com Eastwood), são claros, limpos, fogem da pomposidade mesmo quando encontram um contraluz mais elegante. O ritmo da montagem é desapressado e não parece se importar muito com os ápices dramáticos, esvaziando-os da ênfase que teriam em um produto mais comercial e embalando-os em uma chave de normalidade. Na verdade, os momentos mais simples e costumeiros ocupam mais tempo de tela do que as viradas de maior apelo climático.



"Cry Macho: O Caminho Para a Redenção" (Cry Macho, 2021), de Clint Eastwood - Foto: Warner Bros./Divulgação
“Cry Macho: O Caminho Para a Redenção” (Cry Macho, 2021), de Clint Eastwood – Foto: Warner Bros./Divulgação

Espectadores mais afeitos ao blockbuster médio contemporâneo podem encontrar nessa modéstia um ponto fraco, mas para quem está disposto a embarcar nas narrativas eastwoodianas e, em especial, para quem acompanha a carreira do cineasta há algum tempo, esses aspectos são prós e dão seguimento a uma tendência dentro da filmografia do diretor. “Cry Macho” parece funcionar, por vezes, como a terceira parte de uma trilogia conceitual com outros dois longas dirigidos e estrelados por Eastwood: “Gran Torino” (2008) e “A Mula” (2018). Ambos são, de certa maneira, uma forma de conclusão ao projeto do americano de estudar o conflito entre sua própria imagem simbólica e seu lado humano. Desde o início dos anos 80, em longas como “Bronco Billy” (1980) e “Honkytonk Man” (1982), seus filmes tentam explorar os diálogos entre o Clint icônico e o Clint real e entender as fragilidades e a grandeza de ambos. O envelhecimento impõe a necessidade de que esse dilema se encerre, e “Gran Torino” marca uma espécie de “início do fim” nesse ciclo de autocrítica vaidosa ao lidar com as forças e fraquezas dessa persona mítica e, finalmente, “matá-la”. Por causa disso, em “A Mula”, resta à sua face de indivíduo comum viver as narrativas heróicas e exorcizar seus demônios e defeitos.

Chegamos, então, a “Cry Macho”, com o ser humano Eastwood já bem resolvido quanto a seus erros do passado e livre para viver as narrativas fabulares sem a pressão de ser o herói ou de expurgar seus pecados através delas. A partir disso, a produção encontra um caminho “final” para ele que soa como uma nova possibilidade e, ao mesmo tempo, faz sentido com o tom banal que o filme abraça. Esse caminho é marcado por uma atenção ao outro, aos personagens à margem. Por mais que o protagonista ainda seja o inegável centro da narrativa, a maior parte de suas ações visam fazer algo pelos coadjuvantes. Apesar de sua relutância inicial em alguns casos, Milo sempre acaba optando por ajudar como pode as figuras que o cercam: a generosa dona de um pequeno estabelecimento, um ambicioso porém amigável fazendeiro, um violento galo de briga. Esse olhar para o outro já foi uma questão e mesmo uma parte da trajetória em outros filmes do diretor — longas como “Crime Verdadeiro” (1999), “Menina de Ouro” (2004) ou, ainda, o recente “Sully” (2016). Mas aqui esse mote deixa de ser o trecho de um arco ou um tema a ser discutido e se torna, de certa forma, o próprio motor da narrativa.

"Cry Macho: O Caminho Para a Redenção" (Cry Macho, 2021), de Clint Eastwood - Foto: Warner Bros./Divulgação
“Cry Macho: O Caminho Para a Redenção” (Cry Macho, 2021), de Clint Eastwood – Foto: Warner Bros./Divulgação

Não dá para ignorar, é claro, o fato de esses coadjuvantes serem escritos como tipos relativamente simples. Mas até nisso há uma certa empatia, na forma como estas figuras são agora os símbolos e ícones de algo. A grande estrela simbólica é agora o velho humano, que cochila e cozinha, enquanto os seres do cotidiano são os idealizados, as pessoas comuns são quem representam valores e conflitos maiores que eles próprios. Nessa interação comunitária o filme concentra seus momentos de maior força, em cenas de interações rotineiras que comovem e movem o filme, dão um sentido à jornada sem apelar para sentimentalismos. Essa compreensão da beleza de certas minúcias parece também estar bastante atrelada à idade avançada do homem por trás e na frente das câmeras. Através do semblante de seu personagem ou da sua disposição em segurar uma cena que seria considerada “lenta demais” por boa parte dos filmes hoje em exibição, Eastwood exibe aqui um tipo de sabedoria e uma abertura para outras ideias que só vem com o tempo, que é maturada conforme um grande cineasta envelhece.

Enquanto rejeita, em certa medida, os ideais de masculinidade bruta que sua própria feição já carregou por décadas na tela grande (“esse papo de macho é superestimado”, afirma o protagonista), Clint Eastwood encontra na ideia da vida comum e na generosidade para com o próximo uma ideologia substituta. E, por mais que ele ainda planeje continuar trabalhando, “Cry Macho: O Caminho para a Redenção” oferece a sua persona cinematográfica uma rota que pode servir de um bom desfecho, um que dispõe de suficiente compaixão e tranquilidade para lhe servir de descanso. ■

Nota:

CRY MACHO: O CAMINHO PARA A REDENÇÃO (Cry Macho, 2021, EUA). Direção: Clint Eastwood; Roteiro: Nick Schenk, N. Richard Nash (baseado no livro de N. Richard Nash); Produção: Clint Eastwood, Jessica Meier, Tim Moore, Albert S. Ruddy; Fotografia: Ben Davis; Montagem: David S. Cox, Joel Cox; Música: Mark Mancina; Com: Clint Eastwood, Dwight Yoakam, Eduardo Minett, Natalia Traven, Fernanda Urrejola, Horacio Garcia Rojas; Estúdio: Malpaso Productions; Distribuição: Warner Bros. 104 min