Jordan Peele: autoralidade e subversão no horror

Como imaginar um grupo de filmes recentes de terror sem incluir “Corra!” (Get Out!, 2017)? Como pensar metáforas da gritante desigualdade atual sem lembrar de “Nós” (Us, 2019)? Estas são algumas questões cujas respostas apenas atestam a genialidade de Jordan Peele. Mas há uma longa história por trás deste nome.

Analisando em retrospecto, podemos dizer que a década iniciada em 2010 produziu um curioso fenômeno no universo dos filmes de terror. Ao longo destes anos, vários cineastas de traços bastante autorais surgiram com obras muito inventivas, formalmente competentes e criticamente aclamadas. Jordan Peele, com seu ousado trabalho de estreia e o segundo filme, ainda mais complexo, é um destes artistas e, possivelmente, aquele que conseguiu compor a filmografia mais provocativa e comprometida com questões importantes do nosso tempo.

Jordan Peele no set de “Nós” – Foto Everett Collection/Universal/IndieWire

Ele e outros realizadores e realizadoras produziram uma renovação no gênero terror. No caso de Peele, trata-se da mesma mente que, após um ponto de virada, passou da comédia ao horror, surpreendendo plateias com sua abordagem audaciosa. Essa transição, a princípio, pode parecer estranha, mas desde criança Peele gostava de narrativas que geravam medo e considerava o terror e o suspense os gêneros mais poderosos, mesmo que assustadores.



Nova-iorquino, como tantos outros célebres diretores de cinema, Jordan Haworth Peele nasceu em 21 de fevereiro de 1979. Ele foi criado pela mãe e já na infância se interessava por cinema e demonstrava habilidade natural para desenho, pintura e outras artes visuais, o que, aliás, é perceptível quando avaliamos as composições presentes em seus filmes. Já no Ensino Médio, Peele sabia que queria fazer filmes e, depois de terminar esta fase dos estudos, o futuro produtor e cineasta começou a fazer comédia stand-up em bares de Manhattan, se mudando para Chicago nos anos 2000 para seguir a carreira. Lá, ele estudou improvisação e, mais tarde, foi para Amsterdã, se juntando a um grupo holandês que produzia esquetes e shows de comédia improvisados.

Em 2003, a convite de um produtor, ingressou como ator no programa de comédia “MADtv, onde ficou até 2008. Nesse período, fez amizade com o ator Keegan-Michael Key, com quem ele já havia estudado em Chicago. Juntos, os dois ficaram famosos ao criar e protagonizar a premiada série cômica “Key and Peele”, de 2012 a 2015. O programa usava a sátira como ferramenta para criticar elementos da cultura americana e questões sociais dos Estados Unidos, especialmente as relações raciais. A série foi indicada a 18 prêmios Emmy, vencendo em duas categorias, incluindo um prêmio de Melhor Série de Esquetes de Variedades para Jordan Peele e equipe, em 2016. Não é de se surpreender, portanto, que seu primeiro trabalho cinematográfico como diretor ainda conserve alguns elementos que satirizam problemáticas sociais, e tenha tornado Peele o primeiro diretor negro a ganhar um Oscar na categoria de Melhor Roteiro Original em 2018, assim como o primeiro a ser indicado por produção, roteiro e direção no mesmo ano. Ganhou também o prêmio de Melhor Roteiro Original do Sindicato dos Roteiristas, dentre vários outros.

 

Especificamente no cinema, Jordan Peele começou ainda com o pé na comédia, como ator em inúmeras pontas. A fama, no entanto, veio de outro lugar. E é interessante pensar que suas duas obras de terror, de formas diferentes, dão seguimento à ambição do cineasta de tecer densos comentários sociais por meio de estruturas de gênero (transitando por vertentes do horror, ora pelo thriller, ora pelo suspense), sempre mantendo os toques pontuais do humor a partir do qual sua carreira foi gestada.

Os longas de Jordan Peele apontam, já nos títulos, para movimentos muito importantes dentro da filmografia do cineasta, que se vale de gêneros canônicos da sétima arte sem se prender a convenções e clichês, mas sempre utilizando estes elementos como forma de referência à historicidade do gênero ou dentro de uma subversão do que é usual. “Get Out!” indica o avançar em fuga, e nisso torna implícito o olhar para algo perigoso ficando para trás. Nada mais adequado à proposta do filme, que denuncia a permanência de estereótipos e problemáticas raciais vindas do período escravocrata, a partir de uma metáfora que também questiona o valor dado ao corpo negro. Tudo isso aliado a uma ironia fina que escancara a hipocrisia de certos segmentos de suposto pensamento progressista nos Estados Unidos.

Já o nome e o filme “Us” vão um pouco além, e propõem um movimento interior: de olhar para dentro de nós mesmos (pessoas e suas complexidades), para os EUA (como construção histórica de um império socioeconômico que está à beira de colapsar) e para as entranhas da sociedade norte-americana (é possível refrear os efeitos autodestruidores do capitalismo?). Esses movimentos e olhares se refletem também na subversão que o diretor faz dentro do gênero, ao referenciar clássicos. Afinal, “Tubarão” (Jaws, 1975) e “Sexta-feira 13” (Friday the 13th, 1980), para ficar apenas em dois, eram compostos majoritariamente por atores brancos. Os olhares não são apenas para as temáticas, mas para o próprio fazer fílmico, que é redefinido politicamente por Peele.

Impressiona também nos trabalhos do diretor nova-iorquino o virtuosismo imagético e sonoro. Desde as composições carregadas de simbolismos dos vários duplos em “Nós” e a criação de tensão por meio do som nas cenas de hipnose em “Corra!”, passando também pelos closes dramaticamente pesados e longos (ecos de Bergman?), e não deixando de fora a magistral criação e dilatação do suspense referenciando Hitchcock. Quem não fica grudado à cadeira na cena em que Chris (Daniel Kaluuya) paulatinamente descobre a verdade sobre a família de Rose (Allison Williams) em “Corra!”? Ou no movimento panorâmico desconcertante que acentua o medo quando da chegada dos doppelgängers na casa da família Wilson em “Nós”? E quão singular é a beleza e o assombro simultâneos da magistralmente montada sequência final de dança em “Nós”? É narrativamente climática, visualmente linda e acusticamente ritmada.

E Jordan Peele não parou por aí no terror. A série “Lovecraft Country” (2020) e o remake da cultuada “Além da Imaginação” (The Twilight Zone, 2019-2020) são produções do diretor que, através de elementos de terror e ficção científica, lidam com discussões muito atuais, abordando temas como racismo, relações humanas e tecnologia. Ele também produziu o aclamado e contundente “Infiltrado na Klan” (BlacKkKlansman, 2018), de Spike Lee, e roteirizou e produziu o reboot de “A Lenda de Candyman” (Candyman, 2021), dirigido por Nia DaCosta.

Agora estamos às portas de “Não! Não Olhe!” (Nope, 2022), o mais novo universo criado por Jordan Peele. O filme conta com Daniel Kaluuya, reprisando a parceria muito bem-sucedida com o diretor emCorra!”, Steven Yeun, de “Minari” (2020) e “The Walking Dead” (2010-2022), e Keke Palmer, de “As Golpistas” (Hustlers, 2019). Ainda não há informações precisas sobre o longa, mas o trailer divulgado mostra que a história vai se desenvolver em um rancho de criação de cavalos no interior da Califórnia, onde, certa noite, uma estranha e ameaçadora aparição no céu provoca pânico entre os moradores. A produção é definida pela Universal Pictures como um terror épico e tem estreia prevista no Brasil para 21 de julho deste ano, um dia antes do lançamento nos Estados Unidos. O que esperar? Em se tratando de Jordan Peele, absolutamente qualquer conjectura é perda de tempo. Este mesmo tempo que tem tornado clara a importância e perenidade das imagens e discussões propostas pelo diretor. Mas o certo é que este novo filme será uma obra que, apenas ele, com sua visão de mundo, poderia pensar e executar. Afinal, assim se define um autêntico autor em cinema.