“Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental”: O explícito como estética

Imagine a seguinte cena:

Você entra apressado na sala de cinema. Ironicamente, na pressa para chegar no horário, todo o planejamento e memória foram por água abaixo, e alguns minutinhos de atraso são inevitáveis. Mesmo assim, você ainda consegue entrar quando são exibidas as marcas de patrocínio. Procura o lugar, se senta. O cinema está bem vazio. Assim que termina de se ajeitar no assento, começa o filme. O que se segue são alguns bons minutos de uma filmagem pornográfica amadora. Explícita, daquele tipo que se encontra em sites sem nenhuma dificuldade. A curiosidade de olhar para trás e observar as reações dos outros espectadores ou ver se alguém se levantou para ir embora é grande. Mas, apesar disso, você fica absolutamente imóvel, absorto na cena que ocupa a tela. Há uma estranheza no ar, não pela cena em si, mas porque o ritual conjunto da sala de cinema está diante da intimidade absoluta de outras pessoas. Ninguém ousa tirar os olhos da tela, e você sabe disso não por ver, mas por sentir. Dizem que um filme precisa te fisgar nos primeiros instantes. Eis aí uma maneira sui generis e muito eficaz de fazer isso.

Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental”, de Radu Jude, foi a aposta da Romênia para o Oscar de Melhor Filme Internacional na edição de 2022 da premiação. O filme é uma coprodução da Romênia, República Tcheca, Croácia e Luxemburgo, e já havia ganhado o Urso de Ouro, prêmio máximo no Festival de Berlim em 2021. Uma curiosidade aleatória: esta foi a 70ª edição do Berlinale; setenta anos antes, “Cinderela” (aquele mesmo, da Disney) foi um dos primeiros vencedores. Palmas para a versatilidade do Festival!



Mas, voltando ao filme romeno, aqui acompanhamos o drama de Emi, uma professora de História do Ensino Médio em uma tradicional escola de Bucareste que tem a vida virada do avesso quando um vídeo dela transando com o marido é divulgado na internet. Ela é chamada ao colégio para uma reunião com a diretora e os pais dos alunos. A permanência ou não de Emi na instituição dependerá do resultado deste encontro.

Logo acima eu disse que no filme acompanhamos um drama. Isto é bem verdade, mas talvez seja um pouco impreciso. A situação da protagonista é realmente um tormento, mas o roteiro e a linguagem por vezes são de uma comicidade digna de Luis Buñuel em “O Discreto Charme da Burguesia” (1972) ou “Esse Obscuro Objeto do Desejo” (1977).

A começar pelos créditos e pelos intertítulos que nomeiam cada uma das três partes do filme. As letras cursivas brancas aparecem em um rosa-choque muito chamativo, ao som da animada canção francesa “Eh Toto”. Tudo parece muito exagerado e fora do tom, mas de uma maneira totalmente auto consciente e proposital.

Eu diria que “Má Sorte…” é um “Maligno” (2021) para adultos. Para adultos tanto no sentido daquilo que se vê na tela, quanto das discussões propostas. E não me entendam mal, não se trata de uma depreciação do filme de James Wan, do qual gosto muito, mas uma constatação de que, mantidas as devidas proporções, o longa-metragem romeno é também o trabalho de um diretor e roteirista que resolveu perder completamente os pudores. Surtar. Chutar o pau da barraca. Entornar o caldo. Meter o pé na porta. Que seja.

Assistindo ao filme, me veio à mente o que Glauber Rocha chamou de “Estética da Fome”. Disse ele no artigo homônimo: “A fome latina, por isto, não é somente um sintoma alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. […] Pelo Cinema Novo: o comportamento exato de um faminto é a violência, e a violência de um faminto não é primitivismo”. Fica latente o desejo do cineasta brasileiro de incorporar a fome não apenas à temática dos filmes, mas também ao discurso e, mais importante ainda, à estética.

Separadas as óbvias diferenças entre o Brasil dos anos 1960 e a Romênia de 2021, o que Radu Jude faz poderia ser compreendido então como uma “estética da orgia”. A intensidade, o desejo, a desordem direcionada, a imprevisibilidade. Isto está explícito naquela primeira cena e em algumas outras, mas não apenas. O filme ‒  especialmente a partir do segundo ato ‒ é impregnado desta estética, principalmente na montagem e na construção de certas situações. Com a palavra, o diretor: “Este vídeo [do ato sexual] é central no filme; tudo gira em torno dele. Considero este um filme de montagem, pois convida o público a fazer várias conexões e justaposições entre a chamada obscenidade deste vídeo e a obscenidade mais ampla que nos cerca, que é muito mais real e tóxica. Além disso, eu queria colocar os cinéfilos exatamente na mesma posição que os pais dos alunos. A relação entre cinema e voyeurismo já é comumente aceita – Laura Mulvey escreveu um ensaio fundamental sobre o assunto, ‘Visual Pleasure and Narrative Cinema’”.

"Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental" (Babardeală Cu Bucluc Sau Porno Balamuc, 2021), de Radu Jude - Foto: Imovision/Divulgação
“Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental” (Babardeală Cu Bucluc Sau Porno Balamuc, 2021), de Radu Jude – Foto: Imovision/Divulgação

Esta importância da montagem (crédito para o montador Catalin Cristutiu) começa pela conformação da Bucareste representada na tela. Enquanto a protagonista anda (e como anda!), a cacofonia de veículos é quase insuportável. Os ônibus que passam incessantemente pelas ruas e avenidas chegam a impossibilitar a aparição da própria personagem. Aliás, os enquadramentos escolhidos são quase sempre os menos óbvios. Exemplo: Emi está andando pela rua. Ela passa por uma vitrine com várias marcas publicitárias conhecidas. A câmera para e, ao invés de seguir a personagem, se detém por vários segundos nas mercadorias expostas. Isto é feito várias e várias vezes ao longo do primeiro ato, e pode sugerir várias coisas, que serão paulatinamente problematizadas ao longo do filme.

É quase como se o diretor, à revelia da nossa atenção na protagonista, nos forçasse a todo momento a olhar para estas paisagens que vemos todos os dias, mas para as quais não costumamos dedicar nosso olhar, dizendo “Pois bem! Você quer acompanhá-la? Vamos fazer isso, mas primeiro venha comigo e focalize sua atenção aqui”. Há também planos que adquirem um caráter simbólico. No primeiro, a câmera enquadra uma flor em meio ao asfalto, de certo modo aludindo a uma incompatibilidade de universos (isso fará sentido mais tarde, quando a professora estiver conversando com os pais dos alunos). Em outro, uma propaganda carregada de apelo erótico em um outdoor é destacada em meio ao horizonte comercial, talvez sugerindo o quanto a sexualidade está imbuída na existência humana e é inclusive sugada por uma lógica capitalista de objetificação dos corpos, muito embora alguns personagens do longa a criminalizem.

Assim, se por um lado a cidade parece ser cosmopolita e aberta à massificação neoliberal cheia de outdoors com marcas globais, por outro o filme evidencia a pobreza e os diversos tipos de intolerâncias e preconceitos que povoam aquela sociedade. Enquanto os planos da metrópole mostram um lugar moderno, a própria premissa do filme escancara o reacionarismo ainda presente, e um plano específico chega a mostrar um edifício em ruínas. Dito isto, embora os objetivos sejam os mais louváveis, a repetição de panorâmicas e travellings passeando pela cidade me pareceu excessiva. O filme só não se torna monótono nessa parte porque consegue, mesmo nas reiterações exageradas, mostrar uma certa variedade de situações, intercalando estes planos com cenas de diálogo e alguns momentos de puro nonsense ‒ como por exemplo quando uma senhora interpela sexualmente a câmera (?) nos levando a crer que estamos assistindo a um documentário.

Mas é bom trazer à baila esta verve um tanto quanto surrealista do filme porque, por incrível que pareça, “Má Sorte…” consegue transitar por tons diferentes com organicidade. Se no primeiro ato acompanhamos uma narrativa quase totalmente sóbria, o miolo traz uma dinamicidade inebriante. Por isso o terço final, embora certamente divisivo, não é simplesmente jogado em direção à audiência, mas sintetiza a tese pacientemente construída no início e a antítese energicamente tecida no segundo ato. Não é nada surpreendente esta abordagem dialética, já que o próprio longa se intitula “um esboço de filme popular”.

O “popular” aqui não é tomado no sentido de “instigante para um público amplo”, mas sim a partir da noção de um filme que atende às demandas de amplos grupos sociais. Eu saliento esta diferença porque a noção que se tem de “filme popular” é muito diferente da proposta desta obra. Principalmente em sua segunda parte.

O capítulo em questão não é exatamente inovador em sua forma de dicionário que descortina visões do diretor sobre coisas do mundo. A estratégia inclusive me lembrou muito aquela usada por Jorge Furtado em seu “Ilha das Flores” (1989), embora o diretor brasileiro trabalhe muito mais com a noção de hipertexto. Mas o diretor Radu Jude consegue trazer novos elementos e um humor muito mordaz em vários pontos, criando um dicionário com as mais diversas palavras, desde (sic) “pinto” à noção de “verdade”. As críticas ao capitalismo continuam, como por exemplo quando registros da Revolução Francesa e da Revolução Romena de 1989 são contrapostos a imagens de bebidas cujas marcas apropriaram o sentido revolucionário destes eventos históricos com um propósito comercial. Outro conceito é o de “eficiência”, definida a partir da imagem de uma funerária em frente a um pronto-socorro (em tempos de COVID-19). Aqui vale lembrar o filme conterrâneo “Colectiv” (2019), dirigido por Alexander Nanau, e que foca justamente no sistema de saúde romeno.

"Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental" (Babardeală Cu Bucluc Sau Porno Balamuc, 2021), de Radu Jude - Foto: Imovision/Divulgação
“Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental” (Babardeală Cu Bucluc Sau Porno Balamuc, 2021), de Radu Jude – Foto: Imovision/Divulgação

O filme prossegue com as definições, e me interessam três em específico. Radu Jude conceitua “cinema” usando como metáfora o escudo que o semideus grego Perseu usou para lutar e vencer a górgona Medusa sem ter que olhar para seu rosto, escapando assim de se tornar uma estátua de pedra. O filme argumenta que, tal qual o escudo de Perseu, o cinema nos protege de olhar para uma realidade muito cruel. Conseguimos então fugir à agressividade do mundo e, não obstante, continuarmos a par dos acontecimentos. É uma ferramenta ao mesmo tempo de conscientização política e de alienação. Temos acesso ao real sem efetivamente vê-lo.

Já a “história” é definida como, em resumo, uma demonstração da miséria humana, escancarando uma certa visão niilista. E, completando a trinca, realço a definição dada para “montagem”: duas fotos intercaladas, mostrando ora um grupo de jovens fardados altivos, ora vários corpos em uma vala. O sentido fica para o espectador.

Extraio da relação entre estas três palavras uma ideia que julgo fundamental dentro daquilo que o cineasta defende no filme. A experiência humana no mundo é de tal modo perversa que o cinema é o recurso que Radu Jude encontrou para expor as contradições que nos cercam e nos violentam a todo instante.

Esta é apenas uma das conexões que se pode fazer entre as dezenas de palavras, imagens e significações apresentadas. O filme demanda, inclusive, mais de uma apreciação para uma compreensão mais completa. E, particularmente, creio que é nesta profusão infindável de críticas que reside uma outra falha da obra. Retomando “Ilha das Flores”, é possível dizer que o curta-metragem brasileiro consegue delinear um tema (a desigualdade social) e trabalhar pontualmente suas ramificações. “Má Sorte…”, pelo contrário, atira para todos os lados. Há críticas ao capitalismo, machismo, racismo, xenofobia, nacionalismo, reacionarismo, à religião, à falta de empatia, e por aí vai. Todas elas são muito bem pontuadas e contundentes, mas, ao tentar falar de tudo, o filme acaba se detendo de verdade em poucas coisas. A crítica à cultura do estupro, por exemplo, é muito pertinente (embora seja uma das mais fracas imageticamente falando), mas este tema não volta ou, se retorna, é de modo tão en passant que resta deslocada, como se estivesse ali pelo simples fato de ser relevante em si mesma.

O terceiro ato também sofre do mesmo excesso já comentado, mas agora de um modo diferente. E nem é da estereotipificação de várias camadas sociais e instituições que eu falo aqui. Isto eu creio ser totalmente intencional e bem-aproveitado. O que me incomoda é a repetição desmedida de um artifício narrativo que considero muito pobre. Concluindo a história, acompanhamos a grande cena que marca a reunião de Emi com os pais e a diretora da escola. Contudo, mais de uma vez, a professora e um pai que representa uma espécie de paródia do “homem progressista” recorrem a citações de escritores para defender seus pontos. Coisa parecida já tinha acontecido antes, quando a protagonista andava pela cidade e encontrava pessoas conversando aleatória e expositivamente sobre questões políticas polêmicas. Mas naquele ponto as inserções eram mais espaçadas. Já na cena final, esta verborragia acadêmica quebra a criatividade hegemônica no restante do filme (principalmente no segundo ato), e me senti diante de uma tese de doutorado, quando o autor abre espaço para citações literais em meio à discussão principal. Nada contra as teses, mas o filme tem muitos exemplos de boa construção visual.

Nesta própria cena, a mise en scène estabelece muito bem o clima de julgamento que toma conta do ambiente. As esculturas de leões ameaçadores, a disposição da plateia e da “acusada” e, principalmente, as duas tochas que são colocadas ladeando a protagonista à medida que o “júri” avança. Isto, aliado aos diálogos muito certeiros, ajuda a revelar a hipocrisia daquelas pessoas e a espetacularização da intimidade de uma mulher.

"Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental" (Babardeală Cu Bucluc Sau Porno Balamuc, 2021), de Radu Jude - Foto: Imovision/Divulgação
“Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental” (Babardeală Cu Bucluc Sau Porno Balamuc, 2021), de Radu Jude – Foto: Imovision/Divulgação

Ponto aqui também para a atriz principal do filme, Katia Pascariu, que carrega o primeiro ato e tem uma participação muito bem-humorada no segundo, mas brilha de fato no terço final. No momento em que a personagem é forçada a ver todos assistindo ao vídeo dela com o marido, é possível, mesmo com a máscara e sem palavras, sentir empatia pela personagem, dada a expressividade do olhar de Pascariu, que transmite toda a humilhação e a raiva contida que irá escapar de modo explosivo logo à frente. Aliás, é sintomático que o marido de Emi apenas apareça no início, na hora do sexo, e siga ausente ao longo de todo o filme. Certamente ele não tem de enfrentar a mesma violência que ela por ter ousado colocar em prática o desejo sexual que sentia.

Ao mesmo tempo, a cena transita o tempo todo entre o riso nervoso e a pena que sentimentos pela situação da protagonista. Várias vezes na sala de cinema me peguei sorrindo e, no plano seguinte, revoltado. A raiva e a pena são mérito da atriz. Já o riso vem sobretudo da atmosfera tresloucada à la Buñuel e “Satyricon” (1969, de Federico Fellini) da cena. Destaque para o hilário militar que (piada pronta) come uma banana enquanto o vídeo é exibido. Além dele há vários outros tipos sociais: o padre conservador, o piloto fascista, a mãe xenófoba, a mãe corrupta, e todos eles extremamente misóginos. É interessante notar que os personagens usam um vocabulário tão carregado sexualmente que se torna risível o fato de condenaram uma mulher por… fazer sexo. E não podemos esquecer do negacionismo (em relação à pandemia e até ao Holocausto). O contexto pandêmico também rende algumas pérolas, como quando alguém interrompe a diretora enquanto ela fala pedindo para que a mulher suba a máscara. A propósito, falando em máscara, os acessórios que cada personagem usa são simplesmente impagáveis.

“Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental” é, no final das contas, um manifesto. Muito exagerado e repetitivo algumas vezes, assumidamente piadista em um sem-número de outros momentos. Com um início e um final inesquecíveis, o filme literalmente tapa a boca do reacionarismo e dá uma banana para o tradicionalismo. É um filme provocativo. Desafiador. Fresco. Consciente de seu tempo e de tudo que ficou pra trás. Consciente inclusive do próprio fazer fílmico. Ele prova o que o cinema também pode ser. E acreditem, uma das melhores sensações do mundo é ficar, a um só tempo, maravilhado e reflexivo enquanto descem os créditos. ■

Nota:

MÁ SORTE NO SEXO OU PORNÔ ACIDENTAL (Babardeala cu bucluc sau porno balamuc, 2021, Romênia, Luxemburgo, República Tcheca). Direção: Radu Jude; Roteiro: Radu Jude; Produção: Ada Solomon; Fotografia: Marius Panduru; Montagem: Catalin Cristutiu; Música: Jura Ferina, Pavao Miholjevic; Com: Katia Pascariu, Nicodim Ungureanu, Andi Vasluianu, Alexandru Potocean, Olimpia Malai; Estúdio: microFILM, Endorfilm, Kinorama; Distribuição: Imovision. 106 min