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“Blue Jean”: O armário azul

"Blue Jean" (2022), de Georgia Oakley - Divulgação

"Blue Jean" (2022), de Georgia Oakley - Divulgação

O armário não é simplesmente um lugar onde pessoas são obrigadas a se esconder por anos – ou por uma vida inteira. Ele é uma cultura, sufocante, opressiva e onipresente onde quer que se vá. No supermercado, na escola, no trabalho, no hospital, numa festa, num bar, na igreja, na praça: há sempre o risco e o medo de ser descoberto, notado, questionado, ameaçado, exposto, violentado. O tempo todo.

Essa é a vida de Jean (Rose McEwen), uma professora de educação física na Inglaterra dos anos 1980. Em meio à tramitação da Cláusula 28, por meio da qual a abominável Margaret Thatcher buscava proibir a promoção da homossexualidade como algo positivo em escolas públicas, a protagonista tenta separar sua(s) vida(s), mantendo seu relacionamento com a namorada Viv (Kerrie Hayes) e suas idas a um bar lésbico como um segredo que pode destruir sua carreira profissional. Só que essa compartimentalização é colocada em xeque quando uma de suas alunas, Lois (Lucy Halliday), aparece no bar que ela frequenta.

Como resultado, Jean vive num estado constante de tensão, medo e autocensura, que a cineasta Georgia Oakley (em seu primeiro longa) manifesta por meio da onipresença na paleta de cores do azul que dá título ao filme, “Blue Jean”. Em todas as cenas – seja nas paredes, numa peça de roupa, num elemento do cenário, num uniforme, uma bola – o azul é essa materialização do armário que implacavelmente oprime e sufoca a protagonista. O mais interessante, porém, é que esse azul está também, e principalmente, nos olhos da ótima atriz Rose McEwen: porque o aspecto mais cruel dessa cultura é a homofobia internalizada por suas próprias vítimas.

Jean não escapa disso. Ela acredita que ser lésbica se resume a beijar e transar com uma mulher. O porém é que essa cultura do armário transforma a homossexualidade não apenas em algo errado, mas no inimigo: eles/as, pecadores, desviantes, contra nós, normais. E ao se recusar a afirmar sua identidade para proteger seu emprego, a protagonista acaba se alinhando com o lado adversário, tornando-se uma potencial agente da cultura que a oprime.

Isso faz de “Blue Jean” um estudo de personagem complexo e realista, carregado pela magnética performance de McEwen que, com seu rosto expressivo e traços clássicos gracekellyanos, tem tudo para ser a nova Nicole Kidman. Oakley, porém, recusa-se a fazer de seu filme mais um mero retrato de homossexuais oprimidos e vitimizados, povoando o roteiro com uma fauna diversa e deliciosa de lésbicas, desde Viv e suas amigas até a própria Lois, que vivem sua sexualidade feliz e plenamente, rejeitando o silenciamento servil a que Jean se sujeita.

Essas personagens não só trazem uma leveza e uma riqueza queer ao filme, mas demonstram como, mesmo nas culturas e estados mais violentos e repressivos, existe resistência e felicidade. Não por acaso, uma das únicas locações de “Blue Jean” em que o azul não é a cor predominante é o bar lésbico frequentado pela protagonista: seu banheiro, por sinal, tem paredes fortemente vermelhas, em resposta e oposição à opressão thatcheriana que impera do lado de fora.

"Blue Jean" (2022), de Georgia Oakley - Divulgação
“Blue Jean” (2022), de Georgia Oakley – Divulgação

Acima de tudo, todas essas mulheres mostram como não existe um único jeito certo de ser lésbica. E que existem várias formas e graus de sair do armário, um não sendo necessariamente melhor que o outro. Curiosamente, Jean é técnica de netball na escola, versão exclusivamente feminina do basquete em que a atleta, ao receber a bola, não pode se mover – essa ideia de que uma mulher com o poder em mãos deve permanecer imóvel e se livrar dele. “Blue Jean” é, essencialmente, sobre sua personagem descobrir que a bola está nas suas mãos e que, não importa quais sejam as regras, ela tem o direito e o poder de fazer com ela o que bem entender. E que a liberdade de desrespeitar regras que não nos respeitam é melhor que qualquer vitória. ■

O crítico viajou a convite do 19º Sevilla European Film Festival.

Nota:

BLUE JEAN (2022, Reino Unido). Direção: Georgia Oakley; Roteiro: Georgia Oakley; Produção: Hélène Sifre; Fotografia: Victor Seguin; Montagem: Izabella Curry; Música: Victor Seguin; Com: Rosy McEwen, Kerrie Hayes, Lucy Halliday, Lydia Page, Stacy Abalogun; Estúdio: Kleio Films, BBC Film; Distribuição: Magnolia Pictures; Duração: 1 h 37 min.

filme Blue Jean dirigido por Georgia Oakley

filme Blue Jean dirigido por Georgia Oakley

filme Blue Jean dirigido por Georgia Oakley

filme Blue Jean dirigido por Georgia Oakley

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