"Tár" (2022), de Todd Field - Foto: Universal Pictures/Divulgação
Foto: Universal Pictures/Divulgação

“Tár”: A natureza do poder em um retrato de múltiplas exposições

“Uma das missões de um ator talvez seja sua disposição: não para se esconder, mas para se mostrar, em toda a sua humanidade. E para expor tanto o lado luminoso quanto a face sombria de sua natureza, aberta e verdadeiramente”. Foi com estas palavras que Liv Ullmann (minha atriz preferida, e uma das grandes do cinema mundial) introduziu o prêmio de Melhor Ator na cerimônia de 1976 do Oscar. Há alguns anos guardo estas frases comigo, e tendo a considerar a fala de Ullmann uma das mais interessantes acerca do ofício de um intérprete.

E são estas palavras que se adequam com perfeição ao mais novo tour de force de Cate Blanchett, não surpreendentemente lembrada com uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz nesta temporada de premiações por sua performance em “Tár” — e já premiada no Festival de Veneza do ano passado pelo mesmo papel. Fundamentalmente, e aqui entra o meu juízo particular, a obra trata de uma mulher que alcança um posto de grande influência e relevância em um meio predominantemente masculino, mas que continua reforçando as mesmas problemáticas que estruturam estes ambientes, obliterando a si mesma em favor do poder.

O que nos traz ao enredo que abriga esta figura tão intrincada. Em termos objetivos, o filme acompanha a queda de Tár, acelerada por sua sede de controlar tudo e todos ao seu redor. Começamos com a protagonista em seu mais alto nível de prestígio, e, paulatinamente, mais faces da personagem são reveladas ao público, ao mesmo tempo em que ela precisa lidar com as consequências de suas ações e com as várias figuras de seu entorno, como a esposa Sharon (Nina Hoss), a assistente Francesca (Noémie Merlant) e a nova subordinada na Orquestra e possível interesse afetivo, Olga (Sophie Kauer). O interessante, porém, é que quanto mais o filme avança, mais difícil se torna compreender de fato Lydia Tár. A protagonista pratica corrida e boxe, como que em uma tentativa de equacionar seus demônios, mas essa redenção nunca vem. O filme cai no célebre questionamento acerca da possibilidade ou não de se conhecer em profundidade alguém, mesmo após extenso escrutínio de sua vida, um paradoxo que já havia dado o tom do magistral “Cidadão Kane” (1941), de Orson Welles.



Além de Blanchett, o filme deu indicações ao Oscar também para Florian Hoffmeister (Direção de Fotografia), Todd Field (Direção e Roteiro Original), Monika Willi (Montagem), além, claro, de constar no rol de concorrentes à estatueta de Melhor Filme. Todas as indicações são merecidíssimas, e é perceptível a sinergia entre toda a equipe, nobremente colocada nos créditos iniciais da produção. Mas comecemos pela alma do longa: a pianista, compositora e maestrina Lydia Tár, primorosamente interpretada por Blanchett (também produtora-executiva do longa), que não apenas convence muito bem como uma experiente musicista, como também aprendeu a falar alemão e a conduzir uma orquestra para o papel.

A atriz entrega aqui uma performance absolutamente magnética, sobretudo nos densos olhares, que comunicam diferentes emoções com uma maleabilidade e uma sinceridade absolutas. Em menos de cinco minutos, a presença de Blanchett na tela já havia me feito esquecer que assistia a uma atriz, e passei grande parte do filme acreditando que realmente existia uma pessoa chamada Lydia Tár (primeira e atual maestrina-titular da Orquestra Filarmônica de Berlim) em nosso mundo, e não apenas no real da tela. A intérprete já cumpre então, de saída, um dos principais pressupostos da atuação: é preciso fazer com que o público se esqueça do ator por trás do personagem.

Mas a performance de Blanchett vai mais além. Ao contrário de criar uma fortaleza e se esconder confortavelmente atrás da personalidade de Lydia, “apenas” fazendo o que sabe fazer com maestria, a atriz mostra a todo momento seu domínio completo da interpretação. Seja na ostensiva fisicalidade, muito exigida para o papel de uma regente de orquestra, ou na modulação da voz, sempre comedida, mas subliminarmente ameaçadora, ou ainda no semblante constantemente pesado, como se carregasse um mundo consigo, o que não deixa de ser verdade.

A personagem é de uma complexidade desafiadora, evidentemente para a atriz, mas também para o espectador. “Tár” é, por isso, e pegando aqui a metáfora de alguns cartazes do filme, um retrato feito de múltiplas exposições. Ao longo do filme, vemos de pequenas a gigantescas modulações que indicam toda a variedade de estágios pelos quais Lydia Tár passa e, ainda assim, ao final a personagem ainda se conserva um mistério para o público. Vejamos, por exemplo, a relação da regente com crianças que aparecem no filme. Com sua filha, Petra (Mila Bogojevic), Lydia consegue ser paciente, atenciosa e delicada. Ao mesmo tempo, com uma colega de escola que agride a menina, a musicista exibe uma reação fria, cínica e cruel. Esta dicotomia não é a exceção, mas sim a regra ao longo de toda a trama. Em alguns momentos, Lydia vai além e consegue ser simultaneamente intelectual e feroz, criando um terceiro registro que não parece pender mais para um lado ou para o outro, mas combinar personas que parecem impossíveis de coexistir.

É o caso, poderíamos dizer, de uma das primeiras cenas do filme, após a entrevista e a conversa no restaurante ‒ e quando a narrativa de fato começa a tomar corpo, após duas cenas muito expositivas. Na cena, que se passa na Escola Juilliard, onde Lydia dá aulas como convidada, somos introduzidos à psicologia da personagem. O trecho se estrutura quase que inteiramente como um plano-sequência, muito bem dirigido, no qual a maestrina trava um embate retórico com um aluno pertencente a minorias sobre a validade ou não de interpretar obras criadas por artistas com vidas e trajetórias moralmente questionáveis. A discussão em si é complexa, mas o que emerge do debate são duas linhas principais, que seguirão em paralelo até o final do filme: em primeiro lugar, fica claro como Lydia nunca ataca diretamente as situações ou pessoas que a desagradam, mas sempre age por meio de subterfúgios e de uma agressividade muito comedida, quase imperceptível, mas nem por isso menos abusiva; e, mais importante, o roteiro deixa patente a ambição da personagem pelo controle de tudo e todos à sua volta.

"Tár" (2022), de Todd Field - Foto: Universal Pictures/Divulgação
“Tár” (2022), de Todd Field – Foto: Universal Pictures/Divulgação

Retomo o trabalho de cinematografia de Florian Hoffmeister. Neste plano-sequência, por exemplo, há um interessantíssimo uso da profundidade de campo que evidencia a relação de poder estabelecida entre Lydia e Max, o estudante. No começo, em primeiro plano, vemos o jovem com as pernas visivelmente trêmulas de nervosismo em face da discussão com a professora e, no fundo, também em foco, a regente altivamente apresentando seus argumentos. Instantes depois, ainda sem corte, a câmera muda de posição e vemos Lydia em primeiro plano e Max ao fundo, no mesmo lugar. Formas visualmente interessantes de contar como a personagem está progressivamente sobrepondo sua visão à do aluno.

Ocorre que Lydia Tár, mesmo quando não está no centro do enquadramento, ainda é o centro das atenções (e portanto o elemento principal, em termos simbólicos), como em um momento específico que me saltou aos olhos: Lydia rege a orquestra de forma compenetrada e, no exato centro do quadro, sua companheira e a violinista do conjunto a observa de soslaio. É óbvio, os músicos precisam se manter atentos à figura da maestrina. No entanto, a relação aqui adquire tons também metafóricos, uma vez que a regente não determina apenas o andamento dos instrumentistas, mas manipula a própria dinâmica de poder dos bastidores da instituição e da vida dos profissionais que lá trabalham.

Também na conta do diretor de fotografia (e por que não de Todd Field, cineasta responsável pelo longa) fica outro aspecto visual interessantíssimo da produção: a iluminação soturna como metáfora para a personalidade da protagonista. Se repararmos bem, veremos que o filme se passa predominantemente em espaços fechados e, não raro, as cenas são pouco iluminadas. A própria protagonista é vista apagando luzes algumas vezes, o que dá a entender que ela prefere viver em ambientes obscuros. Um forte reflexo, neste caso, de sua própria vida envolta em mistérios.

Esta atmosfera densa e sombria que circunscreve a protagonista tanto tem a ver com sua própria personalidade inatingível quanto com o ambiente que a cerca. Tenho lido esporadicamente algumas considerações acerca do filme que julgam ser a chamada “cultura do cancelamento” o tema principal de “Tár”. Discordo disto. O filme até tenta lançar alguns olhares sobre a internet e as redes sociais, mas considero essas incursões superficiais, ou pelo menos mal desenvolvidas. Sob minha perspectiva, o filme é sobre o lado obscuro das relações de poder e os agentes que contribuem para a manutenção de práticas predatórias nesses lugares.

E aqui é fundamental nos atentarmos ao fato de que Lydia, mesmo sendo uma mulher em um cargo de decisão, comete vários dos erros historicamente presentes nas mais diversas indústrias e corporações, tanto na área do entretenimento quanto fora dela. Os exemplos mais evidentes estão ligados a como suas relações afetivas com diversas profissionais interferem, de forma antiética, na ascensão e declínio das carreiras e vidas privadas destas mulheres. Não por acaso, “tar” em inglês significa alcatrão, mas conotativamente tem o sentido de uma contaminação ou uma mancha na reputação de alguém. Além disso, a própria personagem reforça um discurso muito despolitizado acerca de sua posição, rebaixando pautas sociais importantes em detrimento de um suposto valor intrínseco da arte. Ou seja, “Tár” constrói um universo que está em flagrante mudança, mas que conserva os mesmos vícios estruturais cada vez mais expostos em escândalos nos tempos recentes.

"Tár" (2022), de Todd Field - Foto: Universal Pictures/Divulgação
“Tár” (2022), de Todd Field – Foto: Universal Pictures/Divulgação

Aliada à fotografia está a montagem, assinada pela austríaca Monika Willi ‒ frequente colaboradora do cineasta Michael Haneke ‒, que constrói, como é comum na música, um crescendo de tensão acumulada que irá precipitar a personagem principal em sua explosão na reta final do longa. É graças à montagem paciente e cumulativa (baseada em planos longos e repetições) do filme que as pequenas fissuras nas vidas pessoal e profissional de Lydia vão progressivamente desestabilizando seu controle, de modo a pavimentar o caminho para a catarse final. Neste aspecto, o filme se aproxima de outras obras recentes que também investem nessa trama de “queima lenta” (ou slow burn). Me lembro em especial do excelente “A Filha Perdida” (2021), dirigido por Maggie Gyllenhaal, e do remake “Suspiria: A Dança do Medo” (2018), de Luca Guadagnino. No caso deste último, fosse a Madame Blanc de Tilda Swinton mais desenvolvida, poderia a personagem fazer uma forte dupla com Cate Blanchett e sua Lydia Tár.

E olhem só, o filme faz uma referência direta em seu final a Marlon Brando e sua participação em “Apocalipse Now”, de Francis Ford Coppola, numa clara simetria entre os personagens psicologicamente complexos de Brando e Blanchett. E eu não poderia deixar de ressaltar um momento particularmente inspirado da montagem, quando uma queda violenta de Lydia em uma calçada é seguida por sua esposa, em casa, preparando uma refeição com um rolo de massa. Dois modos combinados de representar plasticamente os choques pesados pelos quais a vida da artista está passando.

No entanto, sinto falta de mais um pouco de energia no filme de Todd Field. A obra me parece ascética em excesso. Claro, poderia-se argumentar que a própria Lydia Tár acaba por emprestar ao longa como um todo sua austeridade. Porém, sinto que alguns momentos perdem dramaticidade e impacto justamente por esta abordagem gélida e estóica que o diretor imprime à narrativa. Tomo como exemplo um acontecimento trágico que atinge uma personagem outrora muito próxima de Lydia e Francesca. Embora o ocorrido tenha consequências práticas na vida das personagens, a vítima e o acontecimento sempre são introduzidos de forma etérea, dispersa, por um diálogo ou outro que não dão, a meu ver, a substância necessária para algo da magnitude que ficamos sabendo. Do mesmo modo, um fato relacionado a Francesca na parte final do filme acontece é é explorado tão rapidamente que não parece ter um peso real que me toque enquanto espectador. Fica a impressão que, embora Lydia Tár critique tantas pessoas (o financiador e maestro amador Elliot e o aluno Max, por exemplo) por serem robôs, a própria condução do filme assume em certos momentos esse caráter frio e distante que torna a obra um tanto mais indigesta do que o necessário.

Mas, apesar deste pequeno incômodo estritamente pessoal, “Tár” consegue ser, mais do que um estudo de personagem, um fascinante tratado sobre seres humanos e o poder. Ancorado em uma interpretação irretocável e uma entrega absoluta de Cate Blanchett, a obra é daquelas que sempre aprecio bastante por me deixarem em permanente suspense acerca do que irá acontecer em seguida. E, principalmente, por me fazer ficar vários dias pensando e me questionando sobre os sentidos do que vi. Assim como uma imagem feita de muitas exposições, há partes mais claras e outras mais obscuras. Mas as intersecções e contradições, marcas inerentemente humanas, permeiam toda a obra. E é nesse jogo entre esconder e mostrar, entre expor o lado luminoso e a face sombria da realidade, que o filme traz, com abertura e verdade, uma inesquecível perspectiva sobre a natureza do poder e suas mais inquietantes nuances. ■

Nota:

TÁR (2022, EUA, Alemanha). Direção: Todd Field; Roteiro: Todd Field; Produção: Todd Field, Alexandra Milchan, Scott Lambert; Fotografia: Florian Hoffmeister; Montagem: Monika Willi; Música: Hildur Guðnadóttir; Com: Cate Blanchett, Noémie Merlant, Nina Hoss, Sophie Kauer, Julian Glover, Allan Corduner, Mark Strong; Estúdio: Standard Film Company, EMJAG Productions; Distribuição: Universal Pictures; Duração: 2 h 38 min.

filme Tár

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