"Cambaúba" (2022), de Cris Ventura - Foto: Divulgação

Tiradentes 2023: “Cambaúba” e suas confluências a partir do gesto inventariante

A primeira reflexão que me veio após assistir a “Cambaúba”, longa-metragem dirigido pela mineira radicada em Goiás, Cris Ventura, é como o filme abre caminhos. O que torna ainda mais bonito que ele comece com a cena de um ritual indígena que pede permissão, que pede licença para que a travessia seja da melhor maneira possível, para que seja abençoada. Nesse abrir de caminhos, “Cambaúba” explora diferentes recursos audiovisuais que nos mantém atentos e estimulados igualmente pelo que vemos, ouvimos e imaginamos. Para tanto, não há um olhar fixo sobre as personagens, histórias e espaços. É puro movimento, de uma pessoa a outra, de uma casa à outra; um contínuo, assim como o próprio Rio Vermelho que banha o território dos antigos goyazes e carrega tantos significados. A Rua da Cambaúba, na Cidade de Goiás, é um local a ser percorrido por nós e também a ser expandido. A partir desse lugar e do olhar da diretora – que se inscreve no filme sendo também personagem – nos são oferecidas confluências (a conexão com ás águas na escolha deste termo não é mera coincidência), possibilidades de encontros.

Há o encontro com as pessoas que ali habitam e várias pistas de seu cotidiano, seu passado e modos de vida. Por exemplo, nos enquadramentos que detalham o ato de bordar, as acerolas caídas no chão do quintal, a atenção dedicada às tartarugas que comem o resto de fruta de uma casa, a preparação do berimbau para a roda de capoeira, a loja de roupas que só tem peças estampadas porque a moda ali reflete a comunidade: um mix vibrante de cores, desenhos, texturas.

O encontro de gerações também é importante, evidenciando as relações de vizinhança entre mães e filhos, entre crianças mais crescidas e mais novas, entre moradoras antigas e outras que chegaram depois.  Cruzam-se temporalidades e identidades, inclusive pelo uso do som que nos transporta entre passado e presente. E as conversas questionam explicitamente sobre a complexa formação do nosso povo brasileiro, marcado pela colonização, pelo genocídio indígena, a escravidão e o racismo. O que leva, inevitavelmente ao encontro doloroso com as violências históricas e em curso. Quanto a isso, o Rio Vermelho literalmente vermelho é das imagens mais fortes e simbólicas do filme. A informação da carreta que tombou, em 2018, e derramou a carga de sangue bovino no Rio vêm do arquivo de um noticiário da TV, mas as imagens jornalísticas inseridas ganham nova semiótica pelo cinema. Assim como os relatos sobre as enchentes recorrentes e sobre consequências do garimpo nas redondezas.



Então, percebe-se que para conectar corpos, afetos, território e identidade, são montadas imagens e sons de diferentes naturezas como um gesto inventariante. E aqui eu referencio a pesquisadora Patrícia Machado que, para o livro “Mulheres de Cinema”, organizado por Karla Holanda, escreveu sobre o conceito de “montagem como inventário” no cinema da francesa Agnes Vardá, mas que tomo emprestado porque é uma leitura possível sobre “Cambaúba”. Gesto inventariante no sentido de reunir, reorganizar, ressignificar, reimaginar, se deixar ser atravessado por diversos elementos que possam revelar o visível e o não tão visível assim do que se quer contar. O filme se faz pelas trocas entre pessoas vizinhas, principalmente mulheres, detalhes de suas vivências, memórias de infância, gestos do dia a dia e relações horizontais. Tudo isso é complementado pela pesquisa de documentos da cidade, pelos depoimentos, reportagens, e fotografias pessoais e históricas, que são compartilhados como vestígios, marcas do processo de habitação da Rua Cambaúba e da Cidade de Goiás onde ela se encontra.

E há a dimensão fabular, que vai se encaixando, aos poucos, até tomar completamente a narrativa, fundindo realidades e cosmovisões. São incorporados à materialidade do filme, em uma aproximação com códigos do cinema fantástico e de horror, os sonhos que perturbam, as assombrações coletivas e entidades indígenas e africanas. Porque isso também é parte importante desse inventário, mesmo que tenha uma forma outra de ser registrado e transmitido de geração para geração. As molduras, muito presentes na mise en scène em janelas, portas e corredores, nos lembra de certos aprisionamentos que o filme liberta, sobretudo desses elementos não-hegemônicos da História. Nesse sentido, cabe citar também o pensador Walter Benjamin, que diz da possibilidade da montagem de liberar “as forças gigantescas da história que ficaram presas no ‘era uma vez’ da narrativa histórica clássica.”

Essa confluência entre vários elementos do tempo cotidiano, do tempo imaginativo, do tempo histórico e ancestral e do tempo do próprio processo do filme é um entrelaçamento muito rico, como uma tecitura. O filme não só narra sobre uma complexidade cultural, ele se veste dessa complexidade com leveza, humanidade e inventividade, assumindo-se também como um filme feito “em mutirão”. Cada elemento carrega um vínculo importante para o todo. Especificamente sobre as violências, o fantasma que assombra toma forma e nome próprio, mas é muito mais do que a figura do homem branco bandeirante, o paulista Anhanguera. É tudo que a partir dele é refletido de maneira opressora e violenta na vida contemporânea. O próprio nome da rua sendo trocado de “Cambaúba” – palavra indígena que nomeia um tipo de bambu – para Bartolomeu Bueno da Silva nos alerta dessa influência vil que persiste e os apagamentos que acontecem ou podem acontecer até mesmo na língua que falamos. Mas também há a figura da indígena Cari, de Orixás, das personagens Mirna, Leleca, entre outros, que nos conecta à luta e resistência. Luta essa que ferve neste momento no Brasil pelos povos Yanomami. A maior reserva indígena do nosso país está agora no centro das discussões porque vive o pior cenário de devastação, com o avanço do garimpo ilegal causando a morte de vários rios e ecossistemas, assassinando tantas vidas indígenas.  Impossível ver “Cambaúba” e não pensar também sobre a arte se fundindo a vida.

Outro caminho aberto para a nossa travessia é o do metafilme, pois a história que vemos é também sobre o próprio ato de buscar essa história, de construí-la, de processá-la, de não só extrair contemplativamente um material, mas experienciar seus rastros, suas pistas, o que potencializa o pensamento crítico. E, aqui, fica evidente outro recurso de intertextualidade quando se vê, dentro do filme, outros filmes, como, “Aruanã” (1938), de Líbero Luxardo, um dos pioneiros do cinema na Amazônia, o que aponta para o cinema como um documento de sua época e a importância da preservação também dessas imagens.

Então, “Cambaúba” nos leva a imergir na busca desse inventário e na luta pela história e pela identidade. Estamos lado a lado de Cris e daquelas pessoas da Cidade de Goiás que, por extensão, representam o que é o Brasil, como ele se forja, como ele segue numa disputa de narrativas e de poderes seculares. Ao final, nos indagamos: quais são nossas raízes, nossas conexões ancestrais? Que tipo de consequências contemporâneas do processo histórico de ocupação de nossas cidades e comunidades estamos enfrentando? Que inventário de mim, de nós, de nossas comunidades deve ser buscado, reorganizado e defendido com nosso amor e nossas flechas? De que maneira se unir, reconstruir e resistir? De quais mutirões não podemos soltar a mão? A roda de samba, o grupo de mulheres, os rituais de cura e todo afeto presente nas últimas cenas, incluindo o lindo último plano de uma cena pós credito,  nos oferecem bons sinais. Será a medicina da Mirna já fazendo efeito sobre nossos olhos? Espero que sim.