"Titanic" (1997), de James Cameron - Divulgação
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“Titanic”: 25 anos depois

por Felipe Galeno, especial para o cinematório

Ainda não faz 84 anos, mas é quase como se fizesse. Em dezembro do ano passado, “Titanic” completou duas décadas e meia de lançamento mas, na memória coletiva do Ocidente, parece que passou ainda mais tempo. De retorno aos cinemas brasileiros, em 3D e 4K, desde o último dia 9 de fevereiro, o filme de James Cameron é frequentemente citado como um clássico incontornável do cinema em debates pela internet e, respeitadas as devidas proporções, parece ser visto pelas novas gerações como “E O Vento Levou…”, de 1939, era visto pela juventude nos anos 80 e 90: um daqueles colossos românticos de uma era longínqua e antiga do cinema americano.

É claro que as 11 estatuetas no Oscar 1998 e as aceleradas mudanças sofridas pelas tecnologias audiovisuais de lá para cá ajudam a fazer o longa parecer mais velho e obrigatório do que é. Só que, talvez, essa aparência de “clássicão” tenha feito parte do filme desde sua gênese. Revisitar “Titanic” 25 anos depois é perceber que o próprio filme sempre se projetou como um clássico grandioso, como uma espécie de produto anacrônico destinado a ser visto como memória de um outro tempo.

Não dá para dizer que Cameron era o único fazendo isso naquele momento; vale lembrar que os dois últimos vencedores do Oscar de Melhor Filme antes dele foram “Coração Valente” e “O Paciente Inglês”, ambos dramas históricos com pompa e escopo épico. Ainda assim, as bilheterias dos anos anteriores ao de “Titanic” foram dominadas por produções como “Batman Eternamente”, “Toy Story” e “Independence Day”, projetos que miravam em um outro tipo de grandiosidade e com um apelo pretensamente mais “moderno”, com destaque especial às novas tecnologias de efeitos especiais.



O que Cameron propõe com “Titanic” não deixa de dialogar com esses sucessos, na medida em que também apostava em um trabalho “de ponta” em termos de efeitos e tecnologia de estúdio. Só que, nesse caso, o CGI moderno não era desenvolvido em função de uma história de invasão alienígena ou de brinquedos falantes animados. Toda a escala de produção mais avançada servia o propósito de ilustrar melodrama sobre o amor proibido de um jovem casal, ambientado em 1912 — ou, mais precisamente, no meio de uma tragédia histórica que já havia sido adaptada por Hollywood ainda na Era de Ouro dos grandes estúdios, em “Somente Deus por Testemunha“, de 1958.

Considerando isso, a aventura pode ter parecido um desvio curioso na carreira do cineasta, lembrado à época por seus bem-sucedidos trabalhos com as franquias de ficção científica “O Exterminador do Futuro” e “Aliens”. Os dois “Exterminadores” que dirigiu eram filmes sobre máquinas, com um ar futurista e tecnológico. Todo o seu cinema, até então, sempre passava pela relação entre homem e máquina, pelos conflitos entre humanidade e suas mecânicas invenções. O que faria esse homem contando o drama de um casal de amantes e recriando um grande acontecimento de décadas atrás?

No fim das contas, mesmo nesse contexto aparentemente inusitado, o filme que Cameron escolheu lançar em 1997 também é, no fim das contas, sobre a relação humana com a tecnologia, de alguma maneira. Mais do que o navio de uma tragédia de décadas passadas, seu “Titanic” é um símbolo das invenções humanas fadadas à tragédia. Como a Skynet de “Exterminador”, é uma construção material e tecnológica que, em última instância, “mata” os sonhos dos homens que nela depositaram suas esperanças. É, dessa forma, um filme também bem sintonizado com as preocupações materiais do cinema dele, que só olharia de verdade para o imaterial vários anos depois com os “Avatar” (apesar do breve flerte com a transcendentalidade em “O Segredo do Abismo”, de 1989, um filme que, apesar disso, também é majoritariamente encenado no meio de máquinas e construções industriais).

Essa relação com a tecnologia sempre foi o elemento mais metalinguístico do cinema de Cameron. As texturas metálicas dos apetrechos fabris e militares que surgem em cena de muitos de seus filmes por vezes nos lembram que o cinema é, também, sobre a relação entre um homem e uma máquina, um diretor e uma câmera. Filmar não deixa de ser o ato de manusear uma invenção. Um cineasta é alguém que precisa entender as mecânicas e técnicas dessa invenção para manipulá-la, como a Tenente Ripley, de “Aliens”, aprende a usar o exoesqueleto para lutar contra o xenomorpho.

"Titanic" (1997), de James Cameron - Divulgação
“Titanic” (1997), de James Cameron – Divulgação

O navio é, também, uma representação do cinema, ou melhor, de um cinema específico: o clássico hollywoodiano. Por entre os muitos cômodos e salões da colossal embarcação recriada, coexistem gêneros e marcas do cinema feito pelo “studio system” entre os anos 30 e 60. Do romantismo inocente de Jack e Rose à comédia de costumes que surge nas cenas de choque entre classes, do suspense quase hitchcockiano do terceiro ato ao melodrama apaixonado que costura tudo, as emoções da Era de Ouro de Hollywood é onde mira o olhar de Cameron. Recriá-la é lançar um espectro sobre a tela, libertar um fantasma de classicismo sobre as novas telas.

A graça é que esse fantasma talvez nem seja verdadeiro. Cameron não é tão adepto pelas formas clássicas como um Clint Eastwood ou, para citar alguém de uma geração mais nova do cinema americano, James Gray. Seu neoclassicismo é um que nunca chega a ser antiquado de verdade, sempre dialoga com o público de seu tempo, está antenado às linguagens de sua época. Cameron é produtor e milionário, afinal. Portanto, seus interesses não são apenas os artísticos e idealistas, mas também comerciais. Não é à toa que a produção conquistou a maior bilheteria mundial na época.

Seu filme, assim, se torna ainda mais como o barco: um libelo de classicismo que mira nos sentimentos inalcançáveis de obras primordiais, mas um que talvez nem seja verdadeiro, como o CGI pioneiro que toma o céu crepuscular de várias sequências. É uma dinâmica interessante justamente por essas tensões, tão características do cinema hollywoodiano desde sempre. São tensões entre o desejo de arte e o desejo de lucro, uma escola cinematográfica baseada nos interesses comerciais, mas, que por vezes, busca por sentimentos e verdades que parecem sobrehumanas de tão grandiosas ou essenciais.

Nesse sentido, “Titanic” já é, à sua maneira, um passo transcendental no cinema de Cameron. Um filme entre o “já” e o “ainda não”, entre sua presença material em um sistema capitalista de produção de conteúdo e seus puros valores emocionais, sua “aura”. Esses valores aparecem em forma de personagens, em Jack, Rose, Cal Molly. Seus caracteres em cena são menos figuras humanas e mais representações de estados de espírito, elementos bons e ruins de uma personalidade encarnados em símbolos que passeiam pelo navio. Em momentos como o da clássica cena do casal de braços abertos na proa do barco, é como se tudo o que esses personagens representam encontrasse um clímax e nos convidasse a relembrar dos valores que nos compõem o que encontramos de nobre no mundo.

"Titanic" (1997), de James Cameron - Divulgação
“Titanic” (1997), de James Cameron – Divulgação

É nesta mesma cena que Cameron melhor ilustra sua autoconsciência disso, quando transiciona dos amantes em seu momento apaixonado para os destroços submersos do navio. Por alguns segundos, as duas imagens coabitam o plano e nos lembram tanto de onde estamos, do presente, quanto de onde queremos chegar, dos ideais utópicos que nos movem. É aí que está a consciência de um movimento, a consciência de um movimento de construção de memória. “Titanic” recria a história não buscando exatidão, mas buscando os sentimentos primordiais que nos fazem encontrar humanidade no passado, e é por isso que soa clássico e obrigatório desde seu lançamento. Como os exploradores subaquáticos do filme que exploram a carcaça afundada do navio e encontram História, nós também, como espectadores, desvendamos as bases de uma estrutura narrativa neoclássica para encontrar reflexos de sentimentos e ideais que formam nosso entendimento do tempo, passado ou presente. ■

TITANIC (1997, EUA). Direção: James Cameron; Roteiro: James Cameron; Produção: James Cameron, Jon Landau; Fotografia: Russell Carpenter; Montagem: Conrad Buff, James Cameron, Richard A. Harris; Música: James Horner; Com: Leonardo DiCaprio, Kate Winslet, Billy Zane, Kathy Bates, Frances Fisher, Bernard Hill, Jonathan Hyde, Danny Nucci, David Warner, Bill Paxton; Estúdio: Paramount Pictures, 20th Century Fox, Lightstorm Entertainment; Distribuição: Paramount Pictures, 20th Century Fox; Duração: 3h 14min.