"A Pequena Sereia" (The Little Mermaid, 2023), de Rob Marshall - Divulgação/Disney
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“A Pequena Sereia” (2023): Um naufrágio de imagens hiper-realistas

Há bastante tempo, no dia em que completava não-sei-quantos-anos, eu recebi de presente meu primeiro DVD: era uma obra que eu desejava já há muito, e que havia estreado nos cinemas mais de uma década antes do meu nascimento. Tão logo peguei o filme em mãos, “A Pequena Sereia” (1989) me contagiou imediatamente.

O enredo todos já sabemos. A sereia Ariel, uma princesa que sonha viver sobre a terra, faz um acordo com a inescrupulosa bruxa do mar Úrsula, na tentativa de reencontrar Eric, o príncipe humano que ela havia salvado de um naufrágio e pelo qual se apaixonou.

Desde que vi esta história pela primeira vez, a animação da Disney se tornou, com o tempo, meu filme do coração do estúdio. Quando paro para racionalizar e pensar criticamente, minha obra favorita ainda é o pioneiro “Branca de Neve e os Sete Anões” (1937). Porém, “A Pequena Sereia” guarda um aspecto fortemente nostálgico e, mesmo que não o considere o melhor filme da Disney, ainda me encanto toda vez que assisto ao longa, como se fosse a primeira vez que estivesse vendo aqueles personagens, rindo com as gags e piadas ou ouvindo as inesquecíveis canções.



Por tudo isso, aguardava com grande ansiedade o remake live-action que agora estreia nos cinemas. Não porque ame as releituras que a Disney tem feito de seus clássicos. Pelo contrário. De todos os live-actions lançados pelo estúdio que tive a oportunidade de assistir, sempre fico com as versões originais. Mas, ainda assim, e mesmo já com todos os burburinhos constantes de que o filme poderia decepcionar, esperava sinceramente que o remake conseguisse atingir, ou até mesmo superar, o nível de qualidade do original. A presença da ótima Halle Bailey, uma atriz/cantora negra no papel principal (outrora desenhado com a pele branca) também me chamou a atenção, já que isto é algo ainda raro vindo da Disney. Sem dúvida, testemunhamos um movimento relevante de resgate ao cânone, ao mesmo tempo em que novas versões de obras aclamadas são renovadas com mais diversidade, sobretudo em se tratando das animações do estúdio, quase sempre voltadas majoritariamente às crianças ‒ e que cumprem, portanto, função importante no processo formativo de meninos e meninas.

No entanto, e digo isso com bastante pesar, “A Pequena Sereia” (2023) consegue o difícil feito de seguir exatamente a história da animação e, mesmo assim, piorá-la muito, errando na esmagadora maioria das modificações que propõe (que, na verdade, nem são muitas e não chegam a ser substanciais). Nem mesmo a acertadíssima escolha da atriz principal e sua química com Jonah Hauer-King (visivelmente muito à vontade no papel de Eric) ajudaram a impulsionar o filme. O roteiro de David Magee repete diálogos do original inúmeras vezes, e a direção de Rob Marshall também recria planos e cenas em vários momentos da produção.

Mas, ao acertar nesta segurança e não trazer nada de realmente novo em termos de estrutura e desenvolvimento da história, este “A Pequena Sereia” demonstra flagrante covardia. O estúdio parece contar apenas com a memória afetiva do público, e provavelmente o filme terá um grande retorno financeiro e de aceitação da audiência, já familiarizada e afeiçoada ao conto de fadas e seus personagens, assim como aconteceu com o muito criticado remake “O Rei Leão” (2019). Não deixa de ser lamentável, porém, que dezenas de milhões de dólares e o talento de uma equipe e de um elenco gigantescos sejam desperdiçados em uma obra que, no final das contas, se mostra totalmente dispensável.

"A Pequena Sereia" (The Little Mermaid, 2023), de Rob Marshall - Divulgação/Disney
“A Pequena Sereia” (The Little Mermaid, 2023), de Rob Marshall – Divulgação/Disney

Os próprios responsáveis pela produção parecem ter consciência da nulidade do projeto. Chega a ser inacreditável que a Disney tenha visto o corte final do filme e aprovado o lançamento. Isso porque o visual supostamente realista de vários dos personagens ‒ carro-chefe do remake ‒ ora é totalmente disfuncional, pasteurizando de modo deprimente a expressividade das criaturas, ora se torna genuinamente malfeito, como se o filme não tivesse tido tempo suficiente para uma finalização e/ou um apuro maior na criação dos efeitos visuais. Ao entregar uma nova versão com diversas imagens tão ruins, a Disney só torna este “A Pequena Sereia” ainda menor em relação ao filme da década de 80. Afinal, por que escolher uma animação visualmente quase irretocável e produzir um remake com personagens de carne e osso se esta mudança se reflete apenas em figuras (ironicamente) sem vida ou claramente alteradas por computador? O filme em live-action alcança assim o paradoxo de ser mais artificial do que uma animação desenhada à mão.

Justiça seja feita, este problema não atinge a maior parte dos animais e cenários que compõem o fundo do mar. Muitos dos ambientes e criaturas figurantes vão do eficiente ao deslumbrante em termos de realismo. Porém, basta que as sereias,  outros personagens semi-humanos e coadjuvantes importantes como Sebastião (Daveed Diggs) e Linguado (Jacob Tremblay) apareçam para que a computação gráfica (de qualidade muito duvidosa) fique evidente. Javier Bardem (Tritão) e Melissa McCarthy (Úrsula) são os que mais sofrem (e eu diria que nos fazem sofrer com suas atuações absolutamente caricatas), já que tanto seus corpos quanto seus rostos parecem constantemente engessados, como se o CGI aplicado aos atores resistisse à mobilidade. Além disso, efeitos cruciais como a cor roxa da pele de Úrsula ou a barba e a roupa de Tritão parecem totalmente inorgânicos, sem textura ou densidade, deixando claro que não se trata de algo fisicamente presente na superfície do corpo dos intérpretes, mas sim uma adição mal-acabada na pós-produção.

A própria presença constante da água no fundo do mar é representada de modo inverossímil (com pouquíssima fluidez, turvação ou ambiência sonora), restando óbvio que as cenas se passam em um set. A composição de ambientes e personagens também é deficitária, na medida em que a ilusão de profundidade é frequentemente quebrada pela bidimensionalidade do primeiro plano e do plano de fundo. Porém, a disputa é acirrada, e alguns planos das irmãs de Ariel reunidas mais parecem tirados diretamente de filmes como “Barbie em Vida de Sereia” (2010).

"A Pequena Sereia" (The Little Mermaid, 2023), de Rob Marshall - Divulgação/Disney
“A Pequena Sereia” (The Little Mermaid, 2023), de Rob Marshall – Divulgação/Disney

Essa tola perseguição ao realismo também alcança outros coadjuvantes importantes, a exemplo de Linguado e Sebastião, assim como momentos dramáticos fundamentais do longa. Isso faz com que algumas imagens tornadas literais na animação ‒ Sebastião com dentes ou uma expressão inocente nos momentos de pânico, Linguado com o rosto comprimido de pavor, ou ainda, a mão maligna tirando a voz de Ariel durante a consumação do feitiço ‒ sejam dispensadas, tirando grande parte da carga emocional do filme e tornando-o muito mais dependente de diálogos. O caso de Úrsula é sintomático, já que ela passa de vilã dissimulada para uma antagonista que declama afetadamente seus planos maquiavélicos para si própria.

Aliás, fosse este mundo justo, a bruxa do mar moveria um processo contra a Disney e certamente sairia vitoriosa, pelo que o estúdio lhe fez com este remake. Não bastasse a movimentação absolutamente desconjuntada do que deveriam ser os tentáculos da personagem, Úrsula ainda sofre com o trabalho pouquíssimo inspirado de Melissa McCarthy, que investe em um registro vocal forçado e em grunhidos para tentar reproduzir a voz grave e sarcástica de Pat Carroll, dubladora da antagonista no filme original. Úrsula deixa então de ser uma vilã irônica, carismática  e ainda assim ameaçadora para se tornar, neste novo longa, uma personagem ridícula, cujo comportamento às vezes se aproxima do grotesco.

A voz também é um grande problema para Sebastião. Daveed Diggs, o novo dublador do personagem, parece não ter encontrado o tom correto para dar vida ao conselheiro do rei Tritão. O personagem passa continuamente a impressão de ser um caranguejo jovem e descontraído, e não um funcionário submarino experiente e metódico. Porém, falta muito do carisma de Samuel E. Wright, dublador original do crustáceo. Tanto que, quando um dos principais números musicais do filme (“Under the Sea”, ganhadora do Oscar de Melhor Canção Original em 1990) chega e a performance de Sebastião precisa transmitir sua energia criativa e obstinação profissional, a música parece perder muita de sua força e impacto, tornando-se morna, principalmente em função da personalidade insípida entregue pelo ator.

"A Pequena Sereia" (The Little Mermaid, 2023), de Rob Marshall - Divulgação/Disney
“A Pequena Sereia” (The Little Mermaid, 2023), de Rob Marshall – Divulgação/Disney

Em termos imagéticos e narrativos, “Under the Sea” é rebaixada a um fracasso ainda mais notável. Se na animação este é o momento em que Sebastião argumenta e mostra as vantagens da vida submarina para uma Ariel que anseia por sair dali, o live-action inclui um passeio totalmente aleatório (embora esteticamente belo) por vários ambientes marinhos sem que haja correspondência quase nenhuma com os versos, cuidadosamente elaborados por Howard Ashman há mais de trinta anos. Ainda que seja acrescentado um interlúdio instrumental interessante, todo o passeio pelo fundo do mar parece puro exibicionismo, cuja plasticidade não consegue sobrepor a combinação precisa de imagens e sons presente na animação. Contudo, não satisfeitos por diminuir musicalmente a sequência, a produção ainda lhe ataca a coerência narrativa, incluindo algumas participações de Ariel na canção, de modo que acompanhamos a protagonista, até então e posteriormente infeliz com a vida no mar, se juntar a Sebatião para celebrar os triunfos da vida submersa.

Claro, Halle Bailey é incontestavelmente talentosa e incorpora muito bem a delicadeza e altivez esperadas de Ariel, tanto nos mínimos gestos quanto nas fortes performances vocais que entrega. Entretanto, o filme parece querer aproveitá-la em excesso, mesmo quando dramaturgicamente sua habilidade como cantora precisa ser suprimida. Talvez por isso David Magee e Rob Marshall tenham chegado ao paroxismo de incluir duas performances musicais para Ariel mesmo após sua saída do mar, quando, portanto, ela supostamente deveria estar sem voz. Poderíamos até aceitar, como é sugerido, que as músicas são uma exteriorização para o público dos sentimentos da personagem, e que apenas nós e Ariel estamos ouvindo sua voz. O próprio musical da Broadway baseado na animação também inclui músicas para a fase muda de Ariel. Porém, em se tratando deste novo filme e de como ele introduz elementos sem prepará-los ou adequá-los à lógica da história, é muito mais fácil acreditar na falta de coragem da Disney para sustentar, como no filme original, metade do filme sem a voz da protagonista.

Os responsáveis pelo projeto aparentemente não têm consciência alguma de que decisões à primeira vista pequenas, como esta, podem impactar de forma exponencial na engrenagem do roteiro habilmente construído por Ron Clements e John Musker para o filme original, afetando até mesmo outras áreas, como a montagem. E são muitas as mudanças que talvez soem como sopros de novidade, mas servem apenas para tornar o filme um amontoado de ações inexplicáveis em função da imperícia do roteiro. A título de exemplo, enquanto na sequência de “Poor Unfortunate Souls” da animação vemos Úrsula fazer uma espécie de aparte teatral com seus ajudantes para exprimir seu desprezo pelos seres que já enfeitiçou (“Pathetic!”), na nova versão, a bruxa do mar diz a frase de forma totalmente frontal e audível para Ariel, o que prejudica por completo o sentido e enfraquece a natureza mordaz do comentário. Similarmente, as diversas gags protagonizadas por Sebastião em ritmo crescente ao longo da performance de “Part of That World” e a descoberta de sua presença na caverna por Ariel foram retiradas, transformando o que era uma importante ponte dramática entre a canção e o próximo segmento (o naufrágio e o salvamento de Eric por Ariel) em um silêncio prolongado e constrangedor, quando a montagem segura o plano até que os fogos de artifício na superfície comecem.

"A Pequena Sereia" (The Little Mermaid, 2023), de Rob Marshall - Divulgação/Disney
“A Pequena Sereia” (The Little Mermaid, 2023), de Rob Marshall – Divulgação/Disney

Também a pretexto de renovação vazia, desta vez não é o próprio Eric quem encontra Ariel, mas sim um marinheiro. E qual a brilhante ideia que o roteiro dá ao personagem? Levar a ex-sereia simplesmente ao castelo onde vivem o príncipe Eric e sua mãe, a rainha. Nas palavras do homem, “eles saberão o que fazer com ela”. Levar uma pessoa perdida ao palácio real é, com toda a certeza, a primeira ideia que passa pela cabeça de alguém em qualquer regime monárquico… Muito mais justificada e louvável é a tentativa de dar maior agência a Ariel no final do filme. Ao invés de Eric, é ela quem acerta Úrsula com o barco. Parece interessantíssima a elevação da personagem à heroína que salva a todos no fim, e de fato é uma modificação bem-vinda. Mas o roteiro é tão inepto que não se presta nem mesmo a estabelecer anteriormente que Ariel, uma sereia, seria capaz de mudar o curso de um navio. É razoável pensar que Eric, um navegador experiente, pudesse fazer isso. Mas uma sereia recém-saída do mar? A personagem com certeza se prova muito sagaz ao longo do filme, mas, me parece, pilotar um barco exige um pouco mais do que apenas inteligência.

E certamente, falando em novidades, não poderiam faltar as novas canções, ou será que poderiam? Digamos que se Lin-Manuel Miranda havia mostrado todo seu talento como letrista e compositor em “Encanto” (2021), aqui ele demonstra como suas letras podem ser o furo que falta em um navio já tomado pela água. Das três novas músicas, apenas “For the First Time” (cantada por Halle Bailey enquanto Ariel está sem… voz) se salva e funciona muito bem, por se manter minimamente dentro do estilo geral do filme e de suas canções clássicas. Já a terrível “Wild Uncharted Waters” dá a impressão de ser uma canção pop adolescente dos anos 2000, enquanto a ainda pior “The Scuttlebutt” (Awkwafina como Sabidão) é constrangedora e totalmente fora do tom da trilha musical e do filme como um todo. Alguém precisa avisar Lin-Manuel Miranda que canções aceleradas em ritmo de rap (ou outro estilo) não necessariamente combinam com qualquer cena, trilha, narrativa ou filme.

Agora um aviso aos leitores, sobre o porquê de um coadjuvante tão querido como Linguado ter ficado praticamente de fora em boa parte deste texto. Simplesmente várias de suas ações importantes (pegar a estátua de Eric ou levar Ariel até o casamento) são suprimidas ou passadas para outros personagens, o que torna o peixe igualmente sumido ao longo de inúmeras sequências do filme ‒ ausência talvez benéfica para os olhos dos espectadores, tendo em vista o design pavoroso do personagem. Mas, pelo menos, sobra espaço para a adição da mãe de Eric, a rainha Selina (vivida pela excelente Noma Dumezweni), uma interessante contraparte terrena (e mais sensata) ao rei Tritão. A grande rainha faz justiça à nova ambientação caribenha que o filme traz, por sinal muito bem aproveitada durante uma cena surpreendentemente divertida em uma feira.

Estes e outros acertos ocasionais ‒ com um forte plano-detalhe dramático na mão de Ariel no clímax de “Part of Your World”, ou a nova solução para que Eric descubra o nome da sereia ‒ na concepção do filme, bem como o comprometimento e a força da protagonista, apenas tornam mais triste a constatação de que este remake tinha potencial para ser uma obra mais corajosa, melhor elaborada e menos presa tanto ao filme original quanto a um realismo que apenas escancara as fragilidades técnicas da produção. O pouco que funciona aqui poderia facilmente fazer parte de outro filme, original, e não de uma obra que procura uma identificação automática com espectadores da animação. Espero, embora sem muita esperança, que a Disney não repita estes mesmos erros nos filmes que estão por vir. Mas espero principalmente que Halle Bailey, assim como Ariel, inicie uma caminhada rumo a horizontes mais grandiosos. E que seus próximos trabalhos e seu talento passem bem longe do navio naufragado que é este live-action. ■

filme a pequena sereia

Nota:

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A PEQUENA SEREIA (The Little Mermaid, 2023, EUA). Direção: Rob Marshall; Roteiro: David Magee (baseado na história escrita por Hans Christian Andersen e no filme de Ron Clements e John Musker); Produção: Marc Platt, Lin-Manuel Miranda, John DeLuca, Rob Marshall; Fotografia: Dion Beebe; Montagem: Wyatt Smith; Música: Alan Menken; Com: Halle Bailey, Jonah Hauer-King, Daveed Diggs, Awkwafina, Jacob Tremblay, Noma Dumezweni, Art Malik, Javier Bardem, Melissa McCarthy; Estúdio: Disney; Distribuição: Disney; Duração: 2 h 15 min.

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