"Túmulo dos Vagalumes" (Hotaru no Haka / Grave of the Fireflies, 1988), de Isao Takahata - Divulgação/Studio Ghibli
Divulgação/Studio Ghibli

“Túmulo dos Vagalumes”: Traçados de luz, inocência e morte no céu japonês

Por que contar uma história através da animação? “Branca de Neve e os Sete Anões” (1937) investe na fantasia musical e mira primordialmente o público infantil. “Toy Story” (1995) narra uma aventura que só seria crível e tecnicamente possível (para os recursos tecnológicos da época em que foi produzida) caso seus personagens e ambientes ganhassem vida através de desenhos animados. “Meu Amigo Totoro” (1988) se vale da animação justamente para permitir que suas protagonistas encontrem criaturas e realidades mágicas totalmente diferentes de tudo aquilo que concebemos no mundo real. Desde os primórdios da animação até seus desdobramentos mais avançados nos dias atuais, o meio sempre foi substancialmente usado para contar histórias que lidam com o insólito e o fantástico, envolvendo criaturas mágicas e mundos espetaculares.

Praticamente todas as animações da Disney e da Pixar, por exemplo, seguem este direcionamento. Até mesmo o celebrado Studio Ghibli, cujas animações costumam tratar de temas mais densos e não necessariamente direcionados às crianças, também povoa a maioria dos universos fabulosos de suas produções com seres mitológicos. É espantoso, então, que uma das maiores animações já feitas e também um dos primeiros filmes do estúdio japonês tenha pretensões e execução quase totalmente realistas, pelo menos em termos de narrativa.

“Túmulo dos Vagalumes” (1988), de Isao Takahata, narra a história dos irmãos Setsuko, de quatro anos, e Seita, com cerca de quatorze (dublados, respectivamente, por Ayano Shiraishi e Tsutomu Tatsumi no idioma original), que vivem na cidade japonesa de Kobe em meio aos meses finais da Segunda Guerra Mundial. Após a convocação do pai para o conflito e a morte da mãe durante um bombardeio americano, os jovens vão morar com alguns parentes. Insatisfeitos com o tratamento humilhante que recebem, eles saem da cidade e acabam em um abrigo isolado na floresta, onde lutam contra a fome e as doenças e se encantam com as luzes dos vagalumes que existem no lugar.



Como é possível perceber a partir da sinopse, não há nada de faz-de-conta no enredo do filme. Pelo contrário, “Túmulo dos Vagalumes” é baseado em um conto semi-autobiográfico escrito pelo autor japonês Akiyuki Nosaka e publicado em 1976. Ao tratar do contexto nipônico durante a Segunda Grande Guerra, o diretor Isao Takahata (do também magistral “O Conto da Princesa Kaguya”, seu último filme, de 2013) agrega algumas de suas próprias memórias de infância e testemunhos de várias pessoas, além de trabalhar uma temática concreta e traumática ainda presente no imaginário não apenas dos japoneses, mas de vários outros povos.

Dito isso, por qual motivo é interessante contar esta história através da animação, e não por meio de um filme em live-action, cuja capacidade de retratar o impacto visual e a materialidade do conflito seria, em tese, muito mais apropriada? Simplesmente porque o longa de Takahata não procura falar da guerra enquanto conflito, mas de como o ambiente bélico e seu entorno conseguem matar a beleza, a inocência e a luz que existem no mundo.

A partir de uma reelaboração inequivocamente figurativa, reconhecida de imediato por sua notável visualidade artística, o cineasta fala de um tempo histórico célebre pela inclemência e sofrimento generalizados. Porém, o faz de modo que o rosto naturalista dê lugar à face manufaturada, e a destruição palpável se torne a exaltação do quadro cuidadosamente pintado. Tudo aquilo que poderia ser puramente desolador se transforma, também, em algo primoroso de se ver em termos plásticos. A alta tecnologia dos efeitos visuais em um live-action é substituída pelo mais alto nível de uma manifestação artística pioneira (a pintura), com a qual qualquer criança pode, ainda hoje e à sua própria maneira, brincar inocentemente com lápis e papel.

"Túmulo dos Vagalumes" (Hotaru no Haka / Grave of the Fireflies, 1988), de Isao Takahata - Divulgação/Studio Ghibli
“Túmulo dos Vagalumes” (Hotaru no Haka / Grave of the Fireflies, 1988), de Isao Takahata – Divulgação/Studio Ghibli

Imagens bonitas existem desde o início do cinema. Mas Takahata se utiliza da mídia mais ostensivamente pictórica para construir um filme em que a beleza das imagens nos lembra, a todo momento, do que a guerra destruiu. Uma dureza que atinge, em cheio, as crianças. Setsuko e Seita perdem duplamente, por estarem no país que foi derrotado na Guerra, mas também por pertencerem a um grupo especialmente vulnerável e desassistido ao longo do tempo que durou o conflito.

Esta não foi a única vez em que o cinema mostrou crianças indefesas expostas às intempéries sociais do mundo à sua volta. Em uma das cenas mais poéticas do cinema estadunidense, presente em “O Mensageiro do Diabo” (1955), obra-prima de Charles Laughton, os irmãos John e Pearl ouvem o coaxar de um sapo à beira de um rio enquanto estão sozinhos após a morte dos pais, assim como as crianças do filme de Takahata. No igualmente tocante “A Canção da Estrada” (1955), do mestre indiano Satyajit Ray, a irmã mais velha Durga consola o caçula Apu, prometendo que quando ela melhorar os dois irão outra vez ver os trens passando pelo campo, o que se conecta fortemente com o momento em que Seita diz à irmã que eles voltarão à praia depois que ela se recuperar.

Nos dois casos, sabemos que este futuro idílico não irá se cumprir. Seita e Setsuko também não terão, nem de longe, o conforto de uma figura bondosa como aquela interpretada por Lilian Gish no longa americano, e nem mesmo a figura da mãe ainda presente e preocupada com a saúde da filha no filme bengali. Os irmãos de “Túmulo dos Vagalumes” não encontram apoio sequer na tia, e menos ainda nas pessoas com as quais cruzam pelo caminho, ainda que visivelmente sejam crianças precisando de ajuda urgente até mesmo para se alimentar.

E talvez seja precisamente na representação da fome em tempos de guerra (e do quanto as preocupações pueris da infância vão dando lugar às responsabilidades precoces da vida adulta) que o filme se aproveita muito bem do formato que escolheu para contar sua história. Em dado instante, Seita se lembra de um momento do outono em que ele e Setsuko tiraram uma fotografia em um campo aberto com os pais. A animação destaca as folhas caindo em primeiro plano e, por meio de uma fusão, o filme volta para a ação principal, mostrando o arroz obtido pela tia por meio da troca dos roupões da mãe falecida das crianças. Takahata demonstra, visualmente, que o conforto de uma lembrança foi trocado pela necessidade material por ter o básico para comer. Este é o tipo de construção visual que, em um filme live-action, poderia facilmente soar falsa, ou artificial demais. A animação, por outro lado, liberta a obra para que ela se valha de imagens e transições menos literais e mais simbólicas.

"Túmulo dos Vagalumes" (Hotaru no Haka / Grave of the Fireflies, 1988), de Isao Takahata - Divulgação/Studio Ghibli
“Túmulo dos Vagalumes” (Hotaru no Haka / Grave of the Fireflies, 1988), de Isao Takahata – Divulgação/Studio Ghibli

A própria expressividade dos personagens, por exemplo, ganha muito em função dos sentimentos e emoções que os traços estilizados conseguem comunicar. Na ausência de atores e atrizes de carne e osso, é o desenho das expressões faciais, movimentos corporais e até mesmo a dinâmica das roupas no corpo ou da superfície da pele (franzida, suja, machucada) que informa o estado psicológico e físico dos personagens. É perceptível, por exemplo, o quanto a maioria dos adultos presentes no filme tem o rosto desenhado com traços mais angulosos, de modo a transmitir a dureza das pessoas no entorno dos irmãos. Já Seita, Setsuko e sua mãe (que aparece brevemente) compartilham faces mais arredondadas e lisas, reforçando a leveza daqueles sujeitos que estão sendo submetidos a condições de sobrevivência tão adversas.

Da mesma forma, ao longo do filme, aspectos como a aspereza da pele e a curvatura dos olhos vão sinalizando a piora do estado de saúde das crianças devido à desnutrição. Estes pontos contrastam fortemente em estilo com a animação dos cenários e outros elementos presentes nas cenas, que fogem ao realismo fotográfico, mas alcançam um detalhamento figurativo admirável. É o caso, por exemplo, dos mosquitos, que sempre prenunciam a morte, e são animados com riqueza impressionante, incluindo até mesmo os característicos movimentos com as patas que estes insetos fazem a cada vez que pousam em alguma superfície. Ou da água, animada com uma hidrodinâmica irretocável no instante em que Seita bebe do jato vindo de um cano quebrado próximo à sua casa destruída. Em suma, não há uma aparência real (já que sabemos claramente se tratar de um desenho animado), mas um comportamento e uma atmosfera de realidade.

Porém, alguns dos quadros mais estonteantes do filme vêm com o aparecimento dos vagalumes. E, para além do aspecto contemplativo e poético que estes animais trazem, naturalmente a figura dos insetos se torna uma clara alegoria a várias temáticas e relações abordadas pela história. Os vagalumes vão para o túmulo de modo denotativo, em uma cena especialmente emocionante do filme, quando Setsuko enterra o conjunto de insetos que morreram durante a noite e evoca as lembranças de sua falecida mãe.

Ela, a mãe, vai efetivamente para o túmulo de forma semi-metafórica, já que a vemos literalmente ser colocada na sepultura, mas sua morte simboliza também o apagamento da luz que os pais representam na vida dos filhos pequenos. E temos ainda as metáforas completas, dado que os vagalumes podem ser as crianças, que iluminam a vida uma da outra, ou os soldados, que perseguem a vitória a enxergando como uma luz no fim do túnel da guerra, e até mesmo as bombas, que caem do céu e são enterradas nas ruas, casas e corpos.

"Túmulo dos Vagalumes" (Hotaru no Haka / Grave of the Fireflies, 1988), de Isao Takahata - Divulgação/Studio Ghibli
“Túmulo dos Vagalumes” (Hotaru no Haka / Grave of the Fireflies, 1988), de Isao Takahata – Divulgação/Studio Ghibli

“Túmulo dos Vagalumes” continua, mesmo após 35 anos, sendo umas das animações mais bem realizadas, humanamente profundas e impactantes da História, sem nunca depender da exploração simplória da miséria dos personagens. Mesmo uma das cenas finais, que se vale de uma trilha musical operística e estabelece (à la “Titanic”) um retrospecto visual após a tragédia, ainda não parece puramente manipulativa, mas sim uma síntese do argumento do filme, de tudo aquilo que a vida dos personagens havia sido e poderia continuar sendo, não fosse a Guerra e o ódio humano ‒ tanto daqueles que atacavam o Japão quanto do próprio país e parte de sua população, insuflados pelo militarismo que os levaria inclusive a cometer atrocidades em outras localidades da Ásia.

Sem jamais contemporizar as feridas abertas dentro da própria sociedade japonesa, a abordagem de temas maduros se estende também à constituição dos personagens, especialmente de Seita. Se o jovem Akiyuki Nosaka se culpava profundamente por muitas vezes ter pensado primeiro em si e tratado a irmã de modo autoritário, o filme constrói um protagonista mais heroico e que, ainda assim, escapa à idealização do cinema hollywoodiano, tanto por tomar atitudes questionáveis ‒ ele é irredutível ao recusar voltar com a irmã para a casa da tia, que os maltratava, mas onde ainda teriam pelo menos um teto garantido ‒ quanto por falhar na missão de sobreviver e manter viva a irmã ao final da história.

Entretanto, talvez o filme seja justamente sobre isso: crianças inocentes que não têm lugar em meio à barbárie e ao egoísmo humanos. Seita e Setsuko são os vagalumes que se enterram no túmulo em frente ao rio, mas que, com o tempo, acabam se apagando. Uma história ao mesmo tempo tão trágica e lúdica, que só poderia ser contada a partir da animação. “Túmulo dos Vagalumes”, afinal, ilumina esta mídia capaz de exaltar a beleza primordial mesmo na mais dilacerante das histórias. ■

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Nota:

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— Confira também o nosso podcast sobre o filme!

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TÚMULO DOS VAGALUMES (Hotaru no Haka / Grave of the Fireflies, 1988, Japão). Direção: Isao Takahata; Roteiro: Isao Takahata (baseado no livro de Akiyuki Nosaka); Produção: Toru Hara; Fotografia: Nobuo Koyama; Montagem: Takeshi Seyama; Música: Michio Mamiya; Com: Tsutomu Tatsumi, Ayano Shiraishi, Yoshiko Shinohara, Akemi Yamaguchi; Estúdio: Studio Ghibli, Shinchosha; Distribuição: Toho, Versátil; Duração: 1 h 29 min.

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