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Refletindo sobre o “se”, “Vidas Passadas” é emocionante e doloroso

"Vidas Passadas" (Past Lives, 2023), de Celine Song - © Filmcoopi

"Vidas Passadas" (Past Lives, 2023), de Celine Song - © Filmcoopi

A produtora A24 vem sendo destaque no audiovisual com seus títulos premiados e aclamados pela crítica e por um público significativo. O mais recente sucesso foi “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”, ganhador do Oscar 2023 em diversas categorias, entre elas, a de Melhor Filme. O que mais chama a atenção é que a empresa do trio Daniel Katz, David Fenkel e John Hodges foi fundada em 2012 e, mesmo com pouco tempo de atuação no mercado, já se tornou uma dos mais respeitadas no cenário global.

Uma palavra que pode definir os longas da A24 é “verdade”. Seja a história um tanto “sem pé nem cabeça” apresentada no filme mais premiado do Oscar 2023 ou a narrativa tocante mostrada em “Aftersun”, tudo é desenvolvido através de situações identificáveis com a vida real, o que faz com que o público se envolva e se emocione profundamente com os dramas das personagens. E neste exercício de representar filmes em uma palavra, “amor” é a melhor escolha para se falar de “Vidas Passadas”, da diretora Celine Song. Não o significado simples de amor, mas em diferentes camadas.

Não há como negar que, com o passar dos anos, o gênero romance passou a ser subjugado pelas críticas e até mesmo deixado de lado em premiações tradicionais. Não estou aqui para elencar os motivos, mas um deles, provavelmente, é a repetição de fórmulas. E é aí que a obra dirigida por Song acumula pontos positivos: “Vidas Passadas” é um romance que faz o público se emocionar verdadeiramente, se envolver com a história, sem usar a receita pronta de casal apaixonado que fica junto no fim, depois de todos obstáculos; sem o clichê da traição; sem o uso de trilha sonora com música exageradamente sentimental; sem recorrer a discussões calorosas etc. Pelo contrário, na trama, o amor entre o casal protagonista é apresentado de forma sutil e genuína, sem muito barulho (literalmente), mas repleto de emoção nas entrelinhas e nuances.

“Vidas Passadas” é sobre Nora (Greta Lee) e Hae (Teo Yoo). Mais especificamente sobre a bela e singular conexão dos dois, uma relação de amor, cumplicidade e companheirismo iniciada na infância, de uma forma leve e adorável, mas que sofre um rompimento depois que os pais de Nora decidem se mudar para outro país. A família sai da Coreia do Sul para os Estados Unidos e essa distância enorme (tanto geográfica quanto cultural) atravessa os dois. Anos e anos se passam, Nora e Hae já são adultos, e praticamente não se conhecem mais. Mas após várias tentativas frustradas de encontrar sua amiga, Hae consegue, enfim, ter contato com Nora novamente. Aos poucos, eles retomam o sentimento guardado e, não demora muito, ambos estão se esforçando em manter um namoro à distância — a moça mora em Nova York, enquanto ele continua em Seoul. Porém, o romance acaba não engatando. Neste segundo ato do longa, é interessante a forma como a cineasta mostra os empecilhos, muitas vezes cômicos, do relacionamento sem presença física.

E a narrativa do filme segue “sem dar certo” para eles até o final. Mas é por essa via instigante de reflexões que Song provoca o público: será que a história dos dois realmente não deu certo? E se não deu, qual foi o motivo? Alguém é culpado? Nesse sentido, o roteiro é um dos principais destaques. E não é porque traz um enredo complexo, mirabolante, com reviravoltas e pontos que atingem o ápice, como tantos outros do mesmo gênero. Pelo contrário: o texto de Celine pode ser entendido como calmaria, que se fundamenta em uma riqueza de detalhes e narrativa envolvente. A trama se torna ainda mais poderosa ao requerer diálogos mais completos e reveladores, e no fim, conseguir com que eles atinjam essa expectativa. O texto das personagens, principalmente do casal, é tão intenso e importante que, se a diretora optasse por colocá-los sentados, num cenário simples, olhando diretamente para a câmera, apenas interpretando suas falas, o filme, provavelmente, seria igualmente impactante.

Estes momentos são provocados por um elemento crucial: o silêncio. Há diversos momentos do longa em que a câmera foca nas personagens em alguma ação cotidiana, sem o preenchimento de som ou trilha. Num primeiro momento, isso incomoda e causa agonia, pois dá a impressão de que algo está faltando ali. E, sim, muitas vezes está, propositalmente. A última cena, por exemplo, após um dilacerante diálogo de despedida entre Nora e Hae, a protagonista caminha por um tempo em que não se ouve nenhum barulho, o que deixa um nó na garganta de quem assiste. O efeito é notável: sentimos como o coração dessa mulher ficou após aquele doloroso adeus. Em seguida, sobe uma trilha sonora que complementa o silêncio de uma maneira tão arrebatadora quanto o abraço que ela dá em seu marido Arthur (John Magaro), extravasando toda a tensão até então carregada. E falando no cônjuge de Nora, o personagem pode passar um pouco despercebido na trama, já que o casal protagonista realmente se destaca, mas o papel dele é essencial para toda a dramaticidade apresentada. A reflexão de Arthur sobre como seria se sua amada tivesse escolhido outro homem para dividir a vida é tocante. Assim como sua forma respeitosa de lidar com a confusão sentimental da esposa.

Além da ótima escrita do roteiro, a direção de Celine Song é impecável quando o assunto é emocionar de uma forma que mistura ânsias e sutilezas. A história, os personagens, os elementos, a trilha sonora (ou a falta dela)… Tudo está em perfeita sintonia para entregar dor, perda, dúvidas e amor a quem assiste ao filme. Também são destaques a fotografia de Shabier Kirchner e a montagem de Keith Fraase, pois cumprem brilhantemente o papel de nos fazer transitar entre passado, presente e afetos conflitantes.

A reflexão acerca do “se” (ou In-Yun, de acordo com o conceito apresentado na trama) é o ponto-chave que engrandece ainda mais a obra, pois traz à tona um tema cotidiano das pessoas, sobretudo no campo amoroso. Quem nunca se deparou com pensamentos do tipo: “e se eu tivesse dito ‘sim’ àquela pessoa e me permitido viver um romance?” Ou: “e se eu não tivesse optado por dar atenção apenas à minha carreira e tivesse seguido meu coração?” Ou até mesmo: “e se eu tivesse dado uma segunda chance a quem eu decidi não perdoar?” Essas perguntas nos levam a pensar em escolhas e caminhos que seguimos, e que, como no filme, às vezes são determinados por pessoas outras que impactam diretamente nossas vidas.

Por fim, “Vidas Passadas” é sobre a vida adulta. É um contexto dramático acerca de escolhas que já foram tomadas e das consequências destas decisões. E não é algo que tenha relação direta com arrependimento, pois, às vezes, está mais conectado àquela máxima que diz: “era pra ser assim”. Mas é certo aceitar essa frase como algo positivo? É realmente o melhor caminho não lutar por um grande amor de infância e optar pelo mais cômodo, continuando com um amor que, apesar de ser um porto seguro, não transborda como o outro? Será que o que é cômodo é tão ruim mesmo, a ponto de a escolha pelo incerto ser a melhor opção? E a pessoa que não foi escolhida, será que não tem mais importância na vida do outro?

“Vidas Passadas” chega aos cinemas como um romance cujas camadas falam de dor, vazio, escolhas, desencontros, tristeza, incertezas e, claro, amor. Afinal, amor é sobre tudo isso. Inclusive sobre aceitar que há relações que não estão mais em tempo de acontecer. Não nessa vida. ■

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Nota:

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