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“Segredos de um Escândalo”: O que esperar de uma metamorfose?

"Segredos de um Escândalo" (May December, 2023), de Todd Haynes - © May December Productions 2022 LLC

"Segredos de um Escândalo" (May December, 2023), de Todd Haynes - © May December Productions 2022 LLC

“Segredos de um Escândalo”, novo filme do aclamado diretor Todd Haynes, já diz a que veio tanto em seu título nacional quanto no nome original dado ao longa, “May December”. No caso do título nacional, existe uma promessa de que algo altamente publicizado ainda guarda segredos a serem revelados, tudo isso envolto em uma atmosfera de sensacionalismo (um dos principais temas tratados no filme) e de melodrama (um dos principais elementos dos filmes de Haynes). Já o nome original do longa-metragem, apesar de ser uma expressão idiomática da língua inglesa para relacionamentos com uma grande diferença de idade, guarda também uma natureza enigmática, como se a junção direta desses dois meses do ano fosse algum índice de um acontecimento que o espectador deve levantar.

Esses vários sentidos compõem essa espécie de filme-metamorfose. Que não é uma comédia, mas também não é um drama convencional. Que se inspira em um acontecimento da vida real, mas escancara o artifício cinematográfico. Que fala muito diretamente sobre diversos temas, mas ainda mantém uma atmosfera misteriosa, que interpela constantemente o espectador acerca do que é o filme. Na superfície, “Segredos de um Escândalo” é sobre a imersão de Elizabeth (Natalie Portman), uma atriz de televisão, na vida de Gracie (Julianne Moore), uma mulher tornada infamemente famosa por se envolver sexualmente e engravidar de Joe Yoo (Charles Melton), então um garoto de de 13 anos, nos anos 1990. Elizabeth começa a trama visitando a casa de Gracie e Joe, onde ela planeja conviver com o casal e os três filhos como forma de estudo para interpretar a estupradora.

Devo confessar que sinto um forte incômodo ao usar a palavra “estuprador” no feminino, talvez por ser a violência sexual algo tão insidiosamente direcionado às mulheres, o que torna estranho utilizar o termo em um contexto diametralmente oposto. Ao contrário de expressões como “racismo reverso” ou “heterofobia”, puramente fantasiosas, a violência sexual praticada por mulheres tem existência concreta, já que diz respeito a uma ocorrência muito mais individual associada à própria conduta crminosa, embora seja importante pontuar que sua prática é ínfima quando comparada ao crime mais comum e estrutural, praticado por homens. Tudo isso para dizer da coragem de Todd Haynes ao abordar um assunto tão específico, controverso, e, para além disso, inspirado em uma história real, da professora Mary Kay Letourneau e o adolescente Vili Fualaau.

O foco do roteiro (escrito pela roteirista Samy Burch em parceria com seu marido, Alex Mechanik), entretanto, não está exatamente no caso de estupro, mas sim em sua representação. Este parece ser, então, o principal tema trabalhado em “Segredos de um Escândalo”. E Haynes não demora a explicitar a proposta artificial do longa. Uma das primeiras cenas mostra uma festa na casa de Gracie, e a câmera a certo ponto enquadra a personagem fixamente. Ela se prepara para abrir a janela, a trilha (falo mais dela adiante) sobe e, à medida que Gracie abre a geladeira, um zoom vai tornando sua presença ainda maior no quadro. O que ela encontra dentro do eletrodoméstico e transmite verbalmente a uma convidada e ao público? A constatação de que vão precisar de mais salsichas para a festa.

É a partir desta dramatização exagerada que o filme incorpora formalmente a questão da representação e, principalmente, de seu caráter frequentemente superlativo em face dos acontecimentos da vida. A simples falta de salsichas se converte em motivo para um momento de suspense. A cena de sexo existente no longa é totalmente fabricada, tanto por sua duração quanto por um elemento evidentemente artificial que é mostrado. A trilha sonora propositalmente intrusiva de cordas (escrita por Marcelo Zarvos com base na já existente trilha de Michel Legrand para o clássico “O Mensageiro”, de 1971) entra para marcar momentos em que, na verdade, há pouca ou nenhuma grande carga emocional ou virada na trama, como por exemplo nos diversos planos de metamorfoses de lagartas que metaforicamente preenchem o filme. As interpretações transitam entre o histriônico e condescendente (Julianne Moore) e o infantilizado apático (caso de Charles Melton), passando pela mediação justamente da atriz diegética (Natalie Portman), ícone máximo da representação dentro do filme.

A propósito, é curioso notar como “Segredos de um Escândalo” trabalha uma metalinguagem também fraturada, em estágio de metamorfose. Moore interpreta Mary Kay Letourneau, mas não exatamente, já que não se trata de uma biografia. A personagem Gracie interpreta, durante o filme todo, várias versões de si. Já Portman dá vida à sua própria personagem ou a uma versão da Gracie de sua companheira de cena? Em outras palavras, trata-se de uma atriz interpretando uma atriz que, dentro do filme, também faz um papel, por sua vez, de alguém que parece estar o tempo todo fingindo ter uma família e um relacionamento absolutamente normais. Nesse sentido, o processo de Elizabeth tornar-se Gracie espelha o processo de Julianne Moore se transformar em Mary Kay. Dentro desta dinâmica de identidades e representações especulares, talvez a associação mais óbvia seja a “Persona”, de Ingmar Bergman, pelo nome comum das atrizes dentro de cada filme (Elisabet em “Persona”, Elizabeth em “Segredos de um Escândalo”), ou pelo fato dos dois filmes terem monólogos sobre sexo, além de outras frentes que ambos os trabalhos levantam. Nas palavras da própria Natalie Portman, que sintetizam precisamente o filme: “É tudo performance”.

"Segredos de um Escândalo" (May December, 2023), de Todd Haynes - © May December Productions 2022 LLC
“Segredos de um Escândalo” (May December, 2023), de Todd Haynes – © May December Productions 2022 LLC

“Segredos de um Escândalo” segue justamente a trilha de “Persona” ao manter continuamente uma atmosfera de suspense ou inquietação. É difícil prever para onde o filme vai, e somos constantemente provocados a pensar ao que exatamente estamos assistindo, e o que podemos tirar da experiência. Diferente de “Longe do Paraíso” (2002), por exemplo, que era um claro melodrama dirigido por um Todd Haynes em início de carreira, com temas muito bem definidos, o novo filme guarda algo de inacessível, assim como o recente “Tár” (2022), de Todd Field. Porém, se o filme estrelado por Cate Blanchett se sustenta na performance monocentrada de sua atriz principal, o novo longa de Haynes investe em uma batalha psicológica e política (em termos de poder) entre duas intérpretes consagradas.

Moore e Portman criam uma relação que, embora não tão explorada quanto poderia em termos de representações, é um veículo para o talento de ambas as atrizes. Moore, mais experiente, consegue dar nuances muito sutis para sua Gracie. Ela é ora uma esposa e mãe perfeitamente normal, ora uma criminosa condenada que culpa a vítima pela violência sexual. A atriz modula a personalidade de Gracie principalmente através da voz, em alguns momentos ameaçadora, em outros irônica, e, em certos instantes, vulnerável. Seja interpelando Elisabeth acerca da necessidade de uma pergunta no início, reafirmando sua autoconfiança no fim ou desabando emocionalmente várias vezes ao longo do filme, a personagem ganha tridimensionalidade e passa a ser mais do que a caricatura que os tabloides dos anos 1990 parecem ter feito sobre si, segundo o que o filme menciona.

Já Portman é também uma excelente atriz, mas sua personagem acaba perdendo tanto em complexidade dramática quanto em progressão narrativa quanto comparada a Moore. Sabemos pouco acerca de Elizabeth e ela, enquanto personagem, parece ter como motivação apenas seu estudo da personalidade e vivências de Gracie, sem que isso traga consequências substanciais para ela, Elizabeth. Embora mimetize e até reproduza diversos acontecimentos da vida da mulher que irá interpretar, nada parece ter peso significativo para Elizabeth, o que a torna, estranhamente,  menos performativa do que a própria Gracie. Ela por exemplo sente medo da reação do público à sua personagem? Existe, para além do estudo de campo, um preparo emocional para dar vida a uma figura tão controversa? Qual o entorno de Elizabeth, e como ele está (ou não) sendo afetado e reagindo ao novo trabalho da atriz? Tudo isso poderia agregar muito à construção de Natalie Portman, mas a personagem acaba sendo usada em vários momentos no sentido de gerar trechos impactantes, talvez voltados para o Oscar e, por isso, Portman tem poucas camadas reais e variações substanciais para percorrer.

"Segredos de um Escândalo" (May December, 2023), de Todd Haynes - © May December Productions 2022 LLC
“Segredos de um Escândalo” (May December, 2023), de Todd Haynes – © May December Productions 2022 LLC

Dos três atores principais, sem dúvida Charles Melton é, a meu ver, o menos interessante, apesar de seu personagem ser provavelmente o mais complexo e mais sujeito à empatia do público. Embora esteja em um registro tecnicamente adequado para o personagem, o de “criança que precisou crescer à força”, falta emoção à performance do ator. É como se Joe, nesta interpretação, fosse um autômato,  sempre com as mesmas expressões faciais, os mesmos olhares e o mesmo tom de voz. Parece faltar ao ator repertório interpretativo ou, digamos, vocabulário cênico para capturar as contradições do personagem sem necessariamente deixá-lo monótono ou blasé, o que fica claro sobretudo quando ele está em cena com as duas protagonistas.

“Segredos de um Escândalo” não é o filme que eu esperava. Não há uma grande virada de roteiro ou nenhum momento apoteótico. E isso é bom. Embora tenha alguns lugares-comuns (como um uso pouco original de espelhos) e elementos mal inseridos (a mãe de Gracie, por exemplo, é mencionada algumas vezes, mas isso parece não levar a lugar algum), a obra consegue trabalhar muito bem o quão ficcional a realidade pode ser. A cena final consolida essa reflexão que perpassa o filme, ao nos mostrar que, mesmo com o mergulho de Elizabeth na vida de Gracie, o filme dentro do filme ainda é uma narrativa ficcional e potencialmente sensacionalista, assim como geralmente o são as histórias construídas em torno de casos polêmicos. Termina então um virtuoso ciclo de metalinguagem, no qual Haynes expõe para nós, o público, que, por mais aprofundadas, honestas e dedicadas sejam suas intenções, é impossível escapar da artificialidade do espetáculo.

As lagartas cultivadas por Joe são uma boa metáfora tanto para o processo de interpretação quanto para esta impossibilidade de se atingir uma “verdade” na ficção. A lagarta segue sendo a mesma, ao mesmo tempo em que toma uma forma totalmente diferente e arbitrária ao seu controle. “Segredos de um Escândalo” é, afinal, este filme-metamorfose, que parece estar em estado de transição, ainda não totalmente formatado, mas com interessantes e ousados direcionamentos. Senti que falta uma lapidação maior para que o filme atinja o nível de qualidade do já referido “Tár”, e acabei, talvez por isso, saindo da obra ainda sentindo uma incompletude que me impediu de considerá-la tão impactante ou poderosa quanto poderia ter sido. Mas, justiça seja feita, talvez este seja mesmo o objetivo. Se um ator nunca pode atingir a verdade absoluta, não deixa de ser natural que um filme também fique no meio do caminho. Em termos analíticos e de experiência, tão interessante quanto a borboleta final, talvez seja a atmosfera de expectativa acerca do que esperar de uma metamorfose. ■

filme segredos de um escândalo

Nota:
"Segredos de um Escândalo" (May December, 2023), de Todd Haynes - © May December Productions 2022 LLC
“Segredos de um Escândalo” (May December, 2023), de Todd Haynes – © May December Productions 2022 LLC

filme segredos de um escândalo

SEGREDOS DE UM ESCÂNDALO (May December, 2023, EUA). Direção: Todd Haynes; Roteiro: Samy Burch; Produção: Natalie Portman, Sophie Mas, Christine Vachon, Pamela Koffler, Jessica Elbaum, Will Ferrell; Fotografia: Christopher Blauvelt; Montagem: Affonso Gonçalves; Música: Marcelo Zarvos; Com: Natalie Portman, Julianne Moore, Charles Melton, Cory Michael Smith, Elizabeth Yu; Estúdio: MountainA, Gloria Sanchez Productions, Killer Films, Taylor & Dodge, Project Infinity; Distribuição: Netflix, Paris Filmes; Duração: 1h 57min.

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