"Cabana" (2023), de Adriana de Faria - Divulgação
"Cabana" (2023), de Adriana de Faria - Divulgação

O Brasil é o mundo: os curtas da 27ª Mostra de Tiradentes

O curta-metragem talvez se situe dentro de uma zona liminar da arte cinematográfica. Se por um lado este formato permite a construção de propostas mais experimentais, por se destinar geralmente às exibições fora dos circuitos comerciais, por outro é o espaço ideal para que os cineastas (em geral iniciantes) se provem também capazes de exibir seu domínio nas esferas mais clássicas e convencionais do cinema. O curta-metragem, assim como um longa, pode ser feito a partir da animação, trazer uma narrativa ficcional, enveredar pelo documentário ou mesclar propostas, porém sempre com um tempo muito mais reduzido para desenvolver sua ideia. É neste contexto que chama a atenção a tão bem-sucedida curadoria de curtas exibidos na 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes, nas seleções das mostra Foco, Foco Minas, Panorama e Praça. Ouso dizer que, dos filmes a que assisti no festival, os curtas apresentaram temáticas, abordagens estéticas e elaborações imagéticas muito mais interessantes e frontais do que aquelas vistas nos longas.

“O Cavalo de Pedro” (2023), coprodução fluminense e goiana dirigida por Daniel Nolasco, é quem sabe o melhor exemplo para esta afirmação. O misto de falso documentário e revisionismo histórico é tão cínico, absurdo e ridículo que consegue se tornar original e ultrajante, no melhor dos sentidos. O filme começa apresentando ao espectador a clássica pintura “Independência ou Morte” (1888), no que poderíamos supor se tratar a princípio de um filme de montagem, destinado a percorrer conosco o quadro e nos trazer uma análise pictórica e histórica da obra. No entanto, logo depois a obra corta para dois homens se beijando em frente a à “Estátua equestre de Dom Pedro I” (1862), e somos então levados por um recontagem queer da relação de Dom Pedro pai com o barbeiro Plácido Antônio Pereira de Abreu, em meio às negociatas dos dois para lucrar com cavalos. Com uma narração precisa de Renata Carvalho e imagens tão simbólicas quanto explícitas, “O Cavalo de Pedro” une malícia e bom humor na desconstrução de uma das maiores figuras históricas do país.

Continuamos no Brasil Império para falar de “Cabana” (2023), filme paraense dirigido por Adriana de Faria e que tematiza a Cabanagem, revolta formada por negros, indígenas e mestiços que aconteceu entre 1835 e 1840 onde hoje se localiza o estado do Pará. O curta se passa em meio à floresta amazônica, onde uma mulher da revolução recebe a visita de uma mensageira na cabana informando que seu marido morreu e ela terá que fugir com o bebê. No entanto, o curioso (e interessante) aqui é o dispositivo adotado pela cineasta para contar essa história, já que percebemos bem no início tratar-se de um filme silencioso. Sabemos o que as personagens estão dizendo pelas legendas que aparecem em tela, mas também pela forte expressividade das atrizes, Isabela Catão e Rosy Lueji. A edição e mixagem de som do projeto são outro ponto de destaque, uma vez que é pelo manejo desses recursos que a dramaticidade e a tensão do momento são mantidas sempre em nível crescente, seja com o bater intenso na porta no início ou com os ruídos de passos se aproximando no eletrizante final. Com uma trama econômica, mas muito inventiva e bem conduzida, “Cabana” traz um desfecho pouco criativo, mas nem por isso menos surpreendente ou alegórico, em uma trama cuja proposição narrativa insólita se adequa perfeitamente à temática, já que estamos falando de povos e de uma memória silenciados.



A memória apagada também vem à tona em “O lado de fora fica aqui dentro” (2023), filme mineiro dirigido por Larissa Barbosa, e que recupera a lenda de Maria Papuda, mulher negra que, como tantos outros moradores pobres de Curral del Rei, foi expulsa de onde vivia para a construção de Belo Horizonte no final do século XIX. No filme, Marina, uma jovem negra que está grávida, descobre, com a ajuda de sua irmã Núbia, um passado no qual os trabalhadores negros que ergueram a capital foram bestializados e excluídos. É a partir daí que ela começa a ter encontros com Maria, uma senhora que assombra um dos primeiros edifícios da capital, o Palácio da Liberdade. Embora o filme sofra com diálogos expositivos e subtramas pouco exploradas, a premissa criativa e a abordagem vez ou outra onírica se mostram exitosas, principalmente no final do curta, cuja visualidade poética em torno da água (no quadro pregado na parede de onde Maria vive e no quadro da imagem que abriga Marina) sugere uma ligação de gerações para corrigir injustiças históricas.

"O lado de fora fica aqui dentro" (2023), de Larissa Barbosa - Divulgação
“O lado de fora fica aqui dentro” (2023), de Larissa Barbosa – Divulgação

Mulheres negras também são as protagonistas do curta de animação “Dona Beatriz Ñsimba Vita” (2023), porém em uma chave muito mais insólita. O filme mineiro, que iniciou 2024 também como parte da seleção do Festival de Sundance, tem direção, roteiro, montagem, cinematografia e direção de arte assinadas pelo belo-horizontino Leonardo Cata Preta. A obra chama a atenção tanto por sua animação original e bem acabada, marcante pelas linhas finais azuis e vermelhas (cujas cores sempre repetidas são subvertidas no final fortemente político) e pela fluidez dos movimentos, quanto por suas imagens de forte impacto. Livremente inspirado na vida e legado da personagem histórica conhecida como Kimpa Vita, líder congolesa do século XVII, o filme transpõe a heroína para a contemporaneidade, trazendo assim um embate entre a luta antirracista e as recentes forças reacionárias que governaram o país. A protagonista é uma mulher singular determinada a cumprir a missão divina de criar seu próprio povo usando sua habilidade peculiar de produzir clones de si mesma. Dentre os momentos mais desconcertantes estão o início com a fogueira e o mecanismo perturbador de construção dos clones, que espelha séculos de sofrimento dos povos pretos na tentativa de se manterem em grupo.

“Curacanga” (2023), outra animação, também recorre à lenda, mas desta vez se aproximando muito mais do folclore. O filme baiano conta a história do jovem Agustinho, que, para conquistar o amor de Jaciara, sai à caça de uma criatura mitológica brasileira, a Curacanga. Dirigido por Mateus Di Mambro e roteirizado por Jean Lima, o que mais chama a atenção no filme é o uso pontual, mas certeiro, das cores mais saturadas como o vermelho e o rosa, que se destacam em meio ao preto e branco na maior parte do curta. O traço e o preenchimento da animação aqui lembram desenhos feitos com carvão, o que dá um ar mais rústico, rudimentar e mitológico para a história. É também notável a qualidade da animação, tanto em relação aos movimentos dos personagens quanto dos elementos da natureza, tais quais o fogo e a água. Há ainda momentos de especial simbolismo, como quando a irmã de Agustinho diz que, se ele for embora, ela não consegue cuidar sozinha da mãe doente, e um corte preciso nos revela uma estátua de São Jorge em seu cavalo lutando contra o dragão, em uma alusão ao destino heróico do protagonista. Crédito também para a escrita de diálogos poética, que torna o filme e seu enredo muito mais dramáticos, e para a criatividade do roteiro e da montagem, que várias vezes colocam os acontecimentos ligeiramente fora de ordem, tanto para gerar surpresa quanto suspense na percepção do espectador. “Curacanga”, no final das contas, é uma animação madura, que não subestima a capacidade de compreensão do espectador, se valendo de elementos do folclore e entregando um final enigmático que guarda o melhor dos mitos e lendas: o mistério.

Já “Brujeria” (2022), dirigido, roteirizado e montado por Ian Abé, embora não seja uma animação, impressiona por suas imagens carregadas de textura. A partir de filmagens em Super-8 com um alto nível de granulação, o curta paraibano de pouco mais de seis minutos nos leva a uma jornada de paranoia e perseguição. Não que haja alguma trama, diálogos ou elementos visuais ostensivamente aterrorizantes; pelo contrário, é no domínio da expressividade experimental e do desconforto sensitivo que a obra consegue nos imergir em uma atmosfera de pesadelo ‒ de forma muito similar àquela apresentada no curta dentro do filme “Estranho Caminho”, de Guto Parente, longa-metragem também apresentado na 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Através de recursos como um desenho de som constante e cortante e uma inteligente construção de tensão nas sombras indistintas das imagens que mostram figuras perambulando (e às vezes fugindo de uma força misteriosa) em ambientes vazios, “Brujeria” atinge, por meio de uma narrativa simples, um potencial de inquietação notável.

"Brujeria" (2022), de Ian Abé - Divulgação
“Brujeria” (2022), de Ian Abé – Divulgação

O mesmo não se poderia falar de “Quebrante” (2023), curta-metragem documental que provoca também inquietação, mas através de uma intrincada relação entre astronomia, macropolítica e a singularidade de uma personagem. O filme paraense, com direção e roteiro de Janaina Wagner, percorre as ruínas da Rodovia Transamazônica e sua fantasmagoria. Somos levados à pequena cidade de Rurópolis, no Pará – a primeira a ser construída na Rodovia –, onde nos apresenta a Dona Erismar, conhecida na região como “A Mulher das Cavernas” por sua fascinação com esses ambientes. Inspirado tanto no poema “Conversation with a Stone”, da polonesa Wislawa Szymborska, quanto no último filme de Maya Deren, “The Very Eye of Night” (1955), “Quebrante” é engrandecido pela excelente montagem (assinada também por Janaina Wagner, em parceria com Yuyan Wang), capaz de intercalar tanto os momentos mais abstratos do filme quanto os instantes de maior concretude, quando a personalidade única da personagem entrevistada é colocada em evidência. Destaque também para os ótimos usos de travellings e zooms para representar tanto a ação física da gravidade e o magnetismo que a Lua exerce nos humanos quanto a atração simbólica de Dona Erismar pelas cavernas e objetos que encontra nelas.

A mesma verve etérea e de encantamento é encontrada em “Pe ataju jumali / Hot air (Ar quente)” (2023), realizado pelo coletivo “Unides contra a colonização: muitos olhos, um só coração”. O filme, feito inteiramente com imagens captadas a partir de celulares, segue mulheres indígenas e suas andanças performáticas por várias localidades do planeta, como Canadá, Estados Unidos e Colômbia. Consigo, as personagens levam balões (preenchidos com oxigênio e sementes de árvores) que vimos serem tirados da vulva de uma delas no início do filme, ora na intenção de plantar as sementes, ora com o objetivo de confrontar empresas poluidoras. É uma metáfora clara para o papel dos povos originários em cuidar e conservar os ecossistemas e o ar produzidos pela Terra (não por acaso, um substantivo feminino, assim como nossas guardiãs do filme). Em paralelo a isso, acompanhamos também as denúncias de uma ativista, que ressalta os perigos que corre por defender a preservação do meio ambiente e dos modos de vida tradicionais dos povos indígenas. O filme chama a atenção para o fato de os países do Norte Global serem os maiores poluidores do planeta mas, ainda assim, terem criado o sistema de créditos de carbono, que finge proteger florestas no Sul Global, já protegidas por seus povos originários. Porém, o mais notável na obra é sua criatividade ao unir performance, cinema e um discurso radicalmente frontal na condenação ao capitalismo e às suas práticas de destruição.

“Mborairapé” (2023), de Roney Freitas, também traz para o protagonismo os indígenas, porém em um lugar muito menos usual. No filme, acompanhamos Karaí Jeguaká Silva e sua busca por inspiração para compor uma canção de RAP. O curta-metragem documental nos apresenta então a um universo totalmente novo, que nos permite descobrir que o território indígena Jaraguá (na região noroeste da cidade de São Paulo), habitado por povos da etnia Guarani, mantém uma rádio comunitária, conduzida por um MC indígena que também dá aulas de composição de RAP para as crianças, adolescentes e jovens locais. Embora o ritmo se mostre um pouco arrastado, o curta consegue atingir êxitos tanto técnicos, caso dos tracking shots do início, acompanhando o protagonista, quanto temáticos, principalmente por meio da resolução, na qual vemos o personagem central encontrando a música que tanto procurava nos elementos da natureza que sempre foram parte intrínseca de sua vida, como um pássaro que vemos pousado em uma árvore e a própria terra, matéria-prima daquele grupo social.

"Mborairapé" (2023), de Roney Freitas - Divulgação
“Mborairapé” (2023), de Roney Freitas – Divulgação

A música e sua ligação com as tradições populares também são o ponto principal de “O Canto”, dirigido e roteirizado pela dupla Izabella Vitório e Isadora Magalhães. O “canto” do título se revela como sendo as sonoridades únicas das destaladeiras de fumo de Arapiraca, em Alagoas. O documentário nos apresenta Mestra Rosália Gomes como a guia por essa imersão da poesia do cotidiano de mulheres, no geral mais velhas, que têm suas vidas entrelaçadas com a cultura do fumo. À medida que seguimos Rosália, descobrimos as raízes ancestrais e a poderosa força que reside nos cantos que florescem da convivência entre mulheres. Nesse sentido, o curta-metragem é tocante pela sensibilidade a partir da qual aborda as vivências das personagens, se valendo de forma exemplar da linguagem cinematográfica para conduzir o espectador por aquele universo. São excelentes desde as correspondências entre sons e imagens ‒ ora com a sobreposição das canções aos lençóis com flores secando no varal, ora com uma fala explicativa sobre os cantos sendo intercalada com imagens de uma plantação que remete à historicidade da tradição ‒ até a iluminação, que destaca os personagens principais com mais luz a eles direcionadas ou, na direção oposta, o mantêm na contraluz, permitindo que a música fale acerca daquelas pessoas. Um último elogio merece ser feito ao uso expressivo do reverso em um belo plano que mostra a fumaça de um cachimbo retornando ao fornilho, em uma imagem quase simbólica acerca da pretensão do próprio filme, de ir às raízes da tradição.

Outro curta da Mostra, “Fale baixinho” (2023), também tem uma mulher mais velha como protagonista. Dona Maria Onardina Bariani, entretanto, parece bem menos obstinada na vida do que as destaladeiras de Alagoas. No curta-metragem documental dirigido por seu neto, Pedro Balderama Macedo, ficamos sabendo que a senhora de 83 anos passa seus dias dentro de casa, com janelas e cortinas fechadas. Dona Maria não lê, não assiste televisão e não gosta de música. Se arrepende de não ter sido freira e conta para seu neto que planeja morrer em breve. Esta certamente poderia parecer uma personagem desinteressante, demasiadamente simples ou passiva. Entretanto, a protagonista, seu dia a dia e suas conversas com seu neto acabam tornando o filme uma grandiosa meditação sobre a vida, sua finitude e as alegrias que podemos encontrar pelo caminho. Dona Maria, a princípio uma personagem bastante séria e reservada, vai ganhando nuances ao longo da narrativa, seja através do bom uso de sua voz em off e em assincronia com as imagens, dos poéticos planos que mostram seu quotidiano, dos quadros dentro de quadros que ressaltam o universo restrito da personagem e da própria complexidade daquela mulher, que em dado momento chega a dizer que o que mais quer é morrer, mas não nos priva de seus sonhos e, no inteligente final no meio de uma estrada ladeada por plantações (a estrada da vida?), de seu bom humor. Certamente o melhor e mais tocante curta-metragem que vi em Tiradentes.

Do interior de São Paulo, vamos para o interior do Rio Grande do Sul, e daí para o mundo. Mais especificamente, para a África. “Não tem mar nessa cidade” (2024), afinal, tem pretensões além-mar. O filme reúne imigrantes de Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe que estão momentaneamente longe de casa, e se concentra especialmente na relação de dois deles, Paulo e Edneia, que vai se desfazendo à medida que ele volta para seu país de origem e ela fica no Brasil. O curta-metragem é notável tanto pela cultura africana apresentada em toda a sua diversidade quanto por voltar nossa percepção para o não-lugar por vezes ocupado por imigrantes e de como eles se tornam, por isso, mais importantes ainda uns para os outros ‒ afeto sensivelmente representado pelo bom uso das silhuetas na cena do banho dos dois namorados. Embora alguns diálogos sejam ininteligíveis pela qualidade do áudio, o fim da obra, com a metáfora do peixe de volta ao rio (aludindo simbolicamente à volta para a terra natal, necessária mas sofrida) supera quaisquer problemas técnicos ao destacar o que o filme tem de mais valioso: sua sensibilidade e apreço pelos personagens e suas histórias. Ponto também para a bem-utilizada presença da atemporal Cesária Évora na trilha diegética.

"Não Tem Mar Nessa Cidade" (2024), de Manu Zilveti - Divulgação
“Não Tem Mar Nessa Cidade” (2024), de Manu Zilveti – Divulgação

O sentimento de carinho pelas figuras retratadas e suas vivências também é marcante no peculiar curta documental “Até o último sopro”, de Benjamin Medeiros. Descobrimos, através do filme, que no Nordeste da China existe a Música Popular de Fuzhou, um estilo musical do campo composto por suona, grande suona, flauta dupla, sheng e instrumentos de percussão. Somos introduzidos, ainda, a Song Xiping, um professor de Suona que é um dos principais guardiões dessa música. “Até o último sopro” convida o espectador para uma prática pouco conhecida e em momento algum abandona o comprometimento seja com a música, seja com seu intérprete. O som, hipnótico, está sempre presente, assim como os músicos ensaiando, performando publicamente e gravando no estúdio. Destaque para o plano que mostra os pássaros e sua revoada, estabelecendo uma graciosa relação entre a exuberância da vida concreta em sincronia e da harmonia da arte que nos permite viver, representada pelo tour de force final do protagonista tocando a Suona enquanto anda pela rua em um plano longo.

“O tempo é um pássaro” (2023), e nisso já chegamos em outro filme, desta vez dirigido por Yasmin Thayná, a cineasta responsável pelos ótimos “Kbela” (2015) e “Fartura” (2019). O curta-metragem, como é habitual dos filmes da diretora, se propõe a construir imagens de socialização afetuosa entre pessoas negras. Tempos então um almoço, uma caminhada em grupo, um baile funk e outros momentos de confraternização e expressão de amor, cumplicidade e desejo em uma localidade interiorana. Talvez por isso o filme tenha excelentes escolhas de plano e de iluminação, valorizando seja as pessoas e seus movimentos ou os gestos (de cortar a comida, de tomar um chá, de se beijar, de dançar na rua, etc.). Crédito também para a impecável correção de cores do filme, que torna todas as tonalidades saturadas mais vívidas e, justamente por isso, pulsantes, sendo um indicativo da urgência de viver aquele mundo e aquelas experiências. A montagem inventiva, que navega entre ritmos, sequências e cenas com um fluidez quase onírica, auxilia na atmosfera de lânguido lirismo do curta. Se o tempo é um pássaro, nada nos resta senão nos vestirmos com suas penas.

A alegria de ficar no ar, porém, não pode nos impedir de voltar à terra e perceber o quão golpeada ela está. “Água Rasa” (2023), de Dani Drumond, nos conduz pelo rio Paraopeba, contaminado pela lama tóxica de rejeito de mineração devido ao rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, e com o filme percorremos do local do rompimento até a foz do rio, na Represa de Três Marias. Mesclando instantes mais contemplativos ao longo do trajeto traumático realizado por Márcio Vesoli e momentos de maior carga dramática (caso do depoimento de Seu Pedro, morador e pescador da região), a excelente montagem do filme é hábil em manter e respeitar a fala do entrevistado em contraposição ao prolongado silêncio no caminho de barco. Interessante notar como há algo de místico no filme, principalmente pelas imagens gravadas abaixo do barco, no rio, ou pela conexão que nosso personagem principal alcança com um varejão de bambu, por meio do qual ele ouve e se conecta com o rio, com a natureza ao redor e com espíritos ribeirinhos. O curta parece nos dizer que, se ouvimos tragédia no rio, terra e na floresta, é também possível ouvir cura e resistência.

"Água Rasa" (2023), de Dani Drumond - Divulgação
“Água Rasa” (2023), de Dani Drumond – Divulgação

Quem resiste também é Claudia, mãe solo de Jade, mas a uma situação muito mais fantasiosa, embora não menos ameaçadora e simbólica. Em “Segunda-feira, então” (2023), de Julio Pereira, acompanhamos essa mãe que faz entregas de comida pedida por aplicativo para pagar suas contas e vive sua sexualidade livremente nas folgas. Seu senhorio, Ciro, cobra o aluguel de forma sinistra e invasiva. Claudia então tem o prazo de sete dias para pagar seu aluguel, na segunda-feira. O curta-metragem pernambucano vai paulatinamente se mostrando a que veio, e fica clara uma influência muito forte do cinema de horror (mais especificamente dos filmes de monstro e de zumbi). Entretanto, o terror, o gore e em certos momentos o absurdo nunca deixam de estar a serviço do inteligente comentário social feito pelo roteiro (também de Julio Pereira) acerca de temas como pobreza, precarização do trabalho e luta de classes. Tudo isso enquanto se assume um terror por vezes B (principalmente na figura da vizinha), mas nunca envergonhado do cinema de gênero “raiz” e sempre honrando a cinefilia do diretor. Temos aqui uma cena que referencia diretamente (segundo o próprio diretor) o clássico “A Noite dos Mortos-Vivos” (1968), uma trilha sonora à la Anita Rocha da Silveira e imagens perturbadoras (o animal de pelúcia com entranhas, o ataque à criança, o derradeiro confronto com a criatura. Menção honrosa também à iluminação ‒ que, ao melhor estilo clássico de terror, joga luz apenas em metade do rosto de Claudia em certo momento, após a mãe ter tido um pesadelo envolvendo a filha ‒, e à maquiagem do monstro, que lembra os melhores efeitos dos filmes de criatura dos anos 1950. No final das contas, entretanto, esta mãe que luta para cuidar da filha e não hesita em defendê-la acaba salva pela criança e ajudada também pela vizinha, e terminamos com um trio de mulheres superando a ameaça masculina endinheirada e aparentemente misógina. O horror brasileiro não poderia estar melhor.

Deste terror com os dois pés na fantasia para um horror mais sutil e realista, chegamos em “Samuel foi trabalhar” (2024). Dirigido pela dupla Janderson Felipe e Lucas Litrento, que também assina o roteiro e a montagem do curta alagoano, a trama nos apresenta ao personagem-título, que, na véspera de deixar a informalidade e ser contratado, começa a ser assombrado pela fantasia de engenheiro que utiliza como instrumento de trabalho na imobiliária à beira-mar em Maceió. Partindo de uma premissa original, “Samuel foi trabalhar” consegue desenvolver uma metáfora simples, mas imageticamente poderosa para a precarização das relações de trabalho que têm imperado no Brasil contemporâneo e para a filosofia de “vestir a camisa da empresa”. O horror aqui está muito mais na realidade e na sugestão que nunca é explicitada, mas se torna cada vez mais perturbadora à medida que nos damos conta do caminho que o filme está tomando. Temos também momentos inspirados da montagem, que destaca a transição para o elemento desconcertante do filme, e do humor mórbido da obra, que torna-se cada vez mais sombria à medida que Samuel vai tomando o caminho sem volta. O filme, entretanto, não é de todo cínico, e temos momentos de esperança, como quando o protagonista esquece o almoço e todas as colegas resolvem dividir, cada uma, o próprio alimento com ele.

A esperança, aliás, parece ser a palavra de ordem em “Lapso”, de Carolina Caroline Cavalcanti. O curta mineiro, que esteve na seleção do recente 74º Festival de Berlim, segue dois adolescentes da periferia de Belo Horizonte que desenvolvem o afeto mútuo em um momento inusual: ambos cumprem medidas socioeducativas em uma biblioteca após praticarem atos de vandalismo, e é desse quadro aparentemente desolador que os dois passam a compartilhar sentimentos e incertezas diante da dureza dos dias, da repressão e do esquecimento do sistema. Para além do acerto extra-fílmico de colocar no protagonismo uma atriz e uma personagem surdas (que espelham a deficiência da própria realizadora), temos aqui um roteiro muito bem construído, que se preocupa em dar nuances e, principalmente, tempo para que os personagens se conheçam, façam planos, tenham decepções e descubram o que está dentro tanto de si mesmos e de sua história quanto do mundo a seu redor. Crédito ainda para a iluminação que destaca os rostos e expressões faciais dos atores, e para a construção dos planos, em especial um momento lindíssimo no qual os protagonistas estão sentados em um galho de árvore, à beira de uma lagoa.

"Lapso" (2023), de Caroline Cavalcanti - Divulgação
“Lapso” (2023), de Caroline Cavalcanti – Divulgação

Sem dúvida gostaria de ter assistido a mais curtas-metragens na 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes. Cada um destes pequenos grandes filmes é o atestado de que uma boa história não tem extensão. Também de que nem só de longas-metragens vive o cinema. Ainda: não apenas de filmes e histórias estrangeiros é feita a excelência da produção cinematográfica contemporânea. Em matéria de curta-metragem, afinal, o Brasil é o mundo.