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“A Primeira Profecia”: A fé no horror prometido

"A Primeira Profecia" (The First Omen, 2023) - © 20th Century Studios

"A Primeira Profecia" (The First Omen, 2023) - © 20th Century Studios

Na maior parte das vezes, a crítica de cinema encara a expectativa como a mãe da decepção. Criar teorias ou alimentar esperanças sobre determinado filme é visto, então, como um exercício fadado ao fracasso, já que a obra pode acabar fugindo muito daquilo que havia sido projetado, o que de fato acontece na maioria dos casos. Entretanto, é um dever da crítica de cinema sempre ir ao encontro dos filmes de forma aberta, dando ao filme a oportunidade de mostrar seu valor, seja ele qual for. Afinal, ninguém em sã consciência deveria ir ao cinema esperando e torcendo por ver algo de baixa qualidade. Entre o controle de não manter expectativas e o desejo de que a experiência cinematográfica seja proveitosa e frutífera, é esperado que a crítica mantenha um certo equilíbrio.

Confesso que, neste sentido, eu pequei em relação ao novo filme da franquia “A Profecia”. Após assistir ao completo desastre que foi “O Exorcista – O Devoto” (2023), de David Gordon Green, me recusava ingenuamente a acreditar que, mais uma vez, um grande estúdio (no caso, a 20th Century Studios) investiria na distribuição de um longa-metragem tão ruim. Além disso, a prequel (história de origem) “A Primeira Profecia” conta com um elenco de veteranos estelar, incluindo Ralph Ineson (o patriarca da família de “A Bruxa”), o indicado ao Oscar Bill Nighy e a brasileira Sônia Braga. Três atores deste peso não poderiam estar, juntos, em um filme ruim, correto? Finalmente, a direção deste novo filme foi entregue a Arkasha Stevenson, cineasta de primeira viagem no terreno dos longas-metragens e talvez a única mulher a receber o comando de uma franquia de filme de terror nos últimos anos, além de Nia DaCosta (responsável pelo ótimo “A Lenda de Candyman”). Claro, mesmo com estes “argumentos”, o filme poderia ter se revelado muito ruim. Aqui, porém, não se trata de fazer ponderações razoáveis, mas de um exercício de fé. Fui ao cinema esperando, querendo e me esforçando para ver um bom filme, esperando até mais do que a obra prometia e minha experiência pregressa apontava.

Minha fé, no final das contas, foi parcialmente recompensada, já que “A Primeira Profecia” acabou sendo um filme competente e interessante, mas que arrisca pouco tanto em relação ao longa original, “A Profecia” (1976), quanto no que toca nas possibilidades do horror. No filme, situado em 1971, acompanhamos uma jovem estadunidense enviada para se tornar uma freira e trabalhar em um orfanato católico em Roma. Margaret Daino (Nell Tiger Free) é recebida pela Irmã Silvia (Sônia Braga), abadessa do local, e também pelo Cardeal Lawrence (Bill Nighy), que conhece a noviça desde sua infância problemática em um orfanato de Massachusetts. Enquanto é assombrada por eventos cada vez mais estranhos, Margaret conhece o Padre Brennan (Ralph Ineson), e é alertada por ele sobre uma conspiração para provocar o prometido nascimento do Anticristo, desdobramento que vimos no filme de 1976.

"A Primeira Profecia" (The First Omen, 2023) - © 20th Century Studios
© 20th Century Studios

O que mais impressiona em “A Primeira Profecia” é a capacidade da diretora Arkasha Stevenson de, a partir desta premissa, criar um filme cujo ponto positivo principal é a atmosfera. A obra mantém, ao longo de toda a sua duração, um forte clima de presságio, como se coisas muito ruins estivessem sempre prestes a acontecer. Seja o posicionamento sempre centralizado dos personagens, a paleta de cores terrosas e quentes e os zooms lentos à la cinema da década de 1970 ‒ crédito devido também ao diretor de fotografia Aaron Morton (do ótimo remake de 2013 de “A Morte do Demônio”) ‒, ou o pano de fundo político, diversos elementos são combinados para criar a antecipação necessária à história, já que sabemos, desde o início, que Damien, o Anticristo, será bem-sucedido em sua missão de vir à Terra. O início do longa-metragem já deixa este fatalismo bem claro, quando o primeiro plano que vemos mostra uma lenta panorâmica para baixo, em direção a um cemitério romano. Algumas composições incomuns também contribuem para isso, como na cena em que somos introduzidos a Carlita (uma órfã problemática e misteriosa que vive sob os cuidados das freiras, e é interpretada por Nicole Sorace) e a jovem aparece com o corpo cortado pela estrutura da cama, formando uma figura estranha pela descontinuidade.

“A Primeira Profecia” também toma emprestados alguns aspectos de roteiro e ideias visuais importantes de filmes que possivelmente o inspiraram. É o caso óbvio de “O Bebê de Rosemary” (1968), que tem a cena do ritual de concepção satânica homenageada nesta prequel. Mas talvez a maior referência para a realizadora Arkasha Stevenson (também roteirista, ao lado de Tim Smith e Keith Thomas) seja o clássico italiano “Suspiria” (1977), de Dario Argento, e seu remake, “Suspiria: A Dança do Medo” (2018), dirigido por Luca Guadagnino. Do filme setentista, “A Primeira Profecia” pega a premissa de uma estrangeira recém-chegada à Europa que descobre uma conspiração demoníaca. A prequel também investe, em momentos pontuais, nas cores saturadas e contrastantes do longa italiano, principalmente em uma cena específica, quando a colega de Margaret, Luz (Maria Caballero), é enquadrada e iluminada como se estivesse em um filme giallo. Já do remake ítalo-americano, Arkasha Stevenson extrai o contexto político instável e a reviravolta envolvendo a protagonista.

Ela, aliás, é defendida à excelência por uma Nell Tiger Free inspirada. A atriz, que muitos vão conhecer da série “Servant” (2019-2023), é capaz de comunicar gradações sutis de dúvida e horror sem emitir palavras, apenas com a movimentação facial, o que torna seu medo e sua insegurança muito mais palpáveis, tão expressivos na superfície da pele quanto profundos na composição da personagem. É o caso, por exemplo, de quando Margaret tem uma visão monstruosa durante um parto, e o rosto da personagem (auxiliado pela inteligente montagem de Amy E. Duddleston e Bob Murawski) vai se tornando cada vez mais, lentamente, curioso e aterrorizado acerca do que está vindo ao mundo. Nell Tiger Free também assume o desafio de, ao final do filme, referenciar brevemente a antológica cena de Isabelle Adjani colapsando em uma estação de metrô em “Possessão” (1981). A intérprete se entrega ao completo desamparo e descontrole, em uma performance totalmente alinhada à dinâmica do filme e levada a cabo de forma surpreendentemente visceral, embora o instante pudesse ter sido estendido um pouco mais na montagem, para dilatar a exibição do bom trabalho da atriz.

"A Primeira Profecia" (The First Omen, 2023) - © 20th Century Studios
© 20th Century Studios

Ralph Ineson e Bill Nighy, como coadjuvantes, entregam interpretações convincentes e funcionais, mas pouco destacáveis. Já a sempre ótima Sônia Braga incorpora de forma marcante o papel da freira severa e inflexível, com um registro de voz grave, uma dicção pausada e uma movimentação dura, amplificando sua intensidade dramática à medida que a trama avança e seu papel vai ganhando novos contornos. A Irmã Silvia não deixa de ser, a bem da verdade, a encarnação da Igreja, sempre presente, vigilante e reativa. E é justamente pela demonstração desta força da instituição que uma das principais reviravoltas do enredo soa verossimilhante, principalmente à luz dos pequenos, mas representativos recortes do conturbado quadro sociopolítico e cultural da Europa e do mundo nos anos 70.

Entretanto, apesar de diversos acertos, o filme parece pouco disposto a ousar de fato. Tanto integrantes da produção quanto do time de roteiro assumem a intenção de criar um filme de horror “elevado”; porém, por mais problemático que esta caracterização seja, “A Primeira Profecia” passa ao largo da sutileza de “O Bebê de Rosemary”, e também não atinge a violência gráfica das duas versões de “Suspiria”. Temos então um filme que parece indeciso, cambaleando entre uma verve mais psicológica e uma exploração física do medo. Há cenas que apontam para os dois caminhos, mas as escolhas parecem incompletas. Ao mesmo tempo em que a diretora consegue criar bons instantes de suspense a partir do prolongamento da ameaça, variadas cenas terminam em jump scares óbvios e clichês do terror. Na outra ponta, o horror corporal, quando aparece, é entrecortado e rápido. Uma pena, já que a maquiagem e os efeitos práticos são de muita qualidade. Me recordo, novamente, da cena do parto, quando o filme parece cruzar positivamente um limite naquilo que mostra, apenas para logo depois voltar para uma imagética mais comportada, tornando este um dos três raros momentos de maior ousadia no que se refere ao gore.

Da mesma maneira, o roteiro do longa-metragem parece ter pouca coragem de realmente trazer uma nova abordagem à história. Sabemos desde o começo que, qualquer que seja a trama tecida, o Anticristo conseguirá vir ao mundo e será entregue a Robert e Katherine Thorn (Gregory Peck e Lee Remick), seus pais no filme original. Porém, o novo filme brinca pouco com nosso conhecimento e nossas expectativas. A reviravolta sobre a verdadeira mãe de Damien soa óbvia e previsível desde o início, e há personagens pouco aproveitados. Carlita, por exemplo, é apenas uma pista falsa? E quanto à tentativa de interrupção da gravidez, um bom desdobramento que é logo descartado? O filme também abandona uma rota inesperada e bem-vinda, que é explorada ainda no começo, quando Luz leva Margaret a uma discoteca, e vemos emergir o desejo e o engajamento da noviça com experiência mundanas. Há que se falar ainda do final do longa, que mantém um gancho para continuação, mas o faz da forma mais óbvia e pouco original possível, dispensando uma nova personagem que poderia subverter totalmente o que se esperaria de uma prequel de “A Profecia”.. Por que não jogar com as expectativas do público e propor um novo desfecho para a história, se de toda maneira uma sequência parece já estar em mente? O roteiro ainda cai no terreno do capacitismo ao associar, através de um personagem supostamente sensato, deformidades físicas a animais e a forças malignas, reforçando uma ideia extremamente problemática e condenável. Embora o objetivo seja claramente ligar o nascimento do Anticristo a um ideal de eugenia, sempre foi e é ainda mais incabível, em 2024, que a ficção desumanize pessoas cujos corpos não seguem um padrão de “normalidade” estabelecido.

É um alívio, no entanto, perceber que o filme não caiu nas mãos de uma cineasta descompromissado ou incompetente. Arkasha Stevenson é, sem dúvida, uma diretora muito talentosa. A elegância que ela imprime nas cenas, sempre como uma movimentação de câmera muito ritmada, é admirável. Já quando a história exige, a câmera se move freneticamente, quase mimetizando a presença de uma força sobrenatural. Me chamou a atenção, a título de exemplo, um tracking shot já no terceiro ato, quando Margaret passa por uma rua escura em direção ao apartamento do Padre Brennan. Para aumentar a tensão do momento e das descobertas que estão por vir, a diretora posiciona a câmera à frente da atriz, que vem andando em direção à lente até chegar muito perto da tela, enquanto a câmera também se movimenta lentamente para trás. É notável ainda o uso da metáfora das aranhas, que em certo momento são até mesmo sobrepostas ao rosto da protagonista, deixando clara a teia mal intencionada que está se formando em torno de Margaret.

"A Primeira Profecia" (The First Omen, 2023) - © 20th Century Studios
© 20th Century Studios

“A Primeira Profecia” acabou não atendendo às altas expectativas que eu tinha. Infelizmente, não é desta vez que um prequel de uma grande franquia de horror de estúdio se prova uma obra-prima. Porém, temos aqui um filme muito interessante, bem realizado e competente enquanto entretenimento. Com atuações e direção marcantes, fica latente a busca do filme por um público mais consensual, sem grande apelo a ideias muito divisórias. Mas, se avaliarmos bem, o próprio longa e todo o contexto que o envolve não anunciavam nada mais do que isso. Posto então de lado meu empreendimento de fé no impossível, a nova entrada no universo criado há quase 50 anos reaviva minha crença, mais razoável ‒ vejam só ‒, de que sim, é possível ter fé no horror prometido. ■

o menino e a garça

Nota:

o menino e a garça

A PRIMEIRA PROFECIA (The First Omen, 2024, EUA). Direção: Arkasha Stevenson; Roteiro: Tim Smith, Arkasha Stevenson, Keith Thomas (baseado em personagens criados por David Seltzer); Produção: David S. Goyer, Keith Levine; Fotografia: Aaron Morton; Montagem: Bob Murawski, Amy E. Duddleston; Música: Mark Korven; Com: Nell Tiger Free, Tawfeek Barhom, Sônia Braga, Ralph Ineson, Bill Nighy; Estúdio: Phantom Four; Distribuição: 20th Century Studios; Duração: 1h 59min.

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