"Motel Destino" (2024), de Karim Aïnouz - Pandora Filmes/Divulgação
Pandora Filmes/Divulgação

“Motel Destino”: Entre céu, purgatório e inferno | Cannes 2024

crítica motel destino

“Motel Destino” começa com o protagonista Heraldo (o estreante Iago Xavier) brincando e se divertindo com o irmão numa belíssima praia deserta no Ceará. Eles se jogam e rolam na areia, “macaqueiam” provocando um ao outro e, na vastidão da locação e na performance dos dois, a abertura lembra um pouco o início de “2001: Uma Odisseia no Espaço”. No entanto, não é o início da civilização que o diretor Karim Aïnouz quer mostrar, e sim o mito da origem do mundo segundo a bíblia: os dois irmãos estão – literalmente – no paraíso.

Curiosamente para um filme carregado de sexo, lascívia, desejo dedo no cú e gritaria, essa iconografia religioso-cristã é central para o longa brasileiro exibido na competitiva oficial do 77º Festival de Cannes. Se em “A Vida Invisível”, Aïnouz tropicalizou o melodrama, em “Motel Destino” ele faz o mesmo com o noir, trocando o contraste de luz e sombra do gênero clássico pelas cores fortes e o sol ardente do Ceará, numa releitura de “O Destino Bate à sua Porta”, clássico do autor James M. Cain, que vai do céu ao inferno, passando pelo purgatório – isso tudo dentro do mesmo lugar, a locação do título.



"Motel Destino" (2024), de Karim Aïnouz - Pandora Filmes/Divulgação
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No meio dessas três dimensões, está Heraldo – impulsivo, pura corporeidade e quase nada de racionalidade. Um deslize seu acaba causando a morte do irmão e o colocando na mira da traficante/mafiosa para a qual eles trabalhavam. Precisando se esconder, ele encontra refúgio no tal Motel Destino, tornando- se o faz tudo do local e ficando no centro de um triângulo de desejo, sexo e tensão com o casal de donos do lugar, a instável Dayana (Nataly Rocha) e o ameaçador Elias (Fábio Assunção).

Se o erro do protagonista provoca sua expulsão do “Éden”, a geografia do lugar do título é uma espécie de encruzilhada entre paraíso, purgatório e inferno. O espremido corredor em que os três personagens centrais trabalham o dia todo, que se estende pelo fundo do motel e dá acesso a todos os quartos, é como um purgatório que os aprisiona, onde eles ouvem sons que podem vir de um lugar ou do outro. Porque a excelente edição de som da equipe comandada por Fernando Aranha e Waldir Xavier é um dos elementos mais importantes do filme, colocando o sexo no fora de campo o tempo inteiro por meio de urros e gemidos. Essa construção do áudio indica que o interior dos quartos pode ser o céu, o lugar do prazer, ou o inferno porque aqueles gritos também podem ser de dor e tortura.

Ou talvez seja mesmo só o segundo – talvez o inferno seja o paraíso, só que com putaria, pecado, manchas de sêmen, cheiro de suor e sexo por todos os lados. A belíssima fotografia de Hélène Louvart (repetindo a parceria de “A Vida Invisível”) representa visualmente essa dicotomia por meio de cores saturadas que substituem o preto e branco, a luz e sombra, do noir clássico. Os quartos possuem aquelas lâmpadas fortes, coloridas, e os personagens estão o tempo todo apagando-as e acendendo. Quando Heraldo transa com uma mulher logo no início, o vermelho da luxúria incendeia a tela. E quando Elias “joga um verde”, tentando sinistra e nada sutilmente seduzir Heraldo com os sex toys vendidos no motel, ele acende a luz roxa – quente, mas ameaçadora – de uma das suítes.

"Motel Destino" (2024), de Karim Aïnouz - Pandora Filmes/Divulgação
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Esse triângulo de sedução e perigo, tensão e desejo, funciona e mantém o/a espectador/a num misto de tesão e expectativa pelo pior graças ao bom elenco, que cria personagens de moralidades e intenções igualmente dúbias, mas completamente diferentes um do outro. Iago Xavier confere uma corporeidade explosiva e um fogo voraz a Heraldo, incapaz de pensar muito antes de agir, mas sempre movido pelas melhores intenções. Nataly Rocha dá uma instabilidade imprevisível e um sorriso enigmático a Dayana. E Assunção está ótimo como um alcóolatra violento e ameaçador, mas que também pode ser protetivo e sedutor com o protagonista.

Aïnouz e seu roteiro (escrito por ele, Maurício Zacharias e Wislan Esmeraldo) perdem a chance de subverter de forma mais radical a dinâmica e os desdobramentos desse triângulo, resultando num final um pouco previsível e aquém do que a produção entrega até ali – bem como naquele que é provavelmente um dos trabalhos menos queer do cineasta. O diretor, porém, parece querer realizar um filme que, mesmo intoxicado por uma atmosfera de perversidade e morte pairando no ar, não é perverso – substituindo a violência física do noir pelo tesão e o sexo dos corpos sub-equatoriais, ao som de “Pega o Guanabara” de Wesley Safadão.

Os três protagonistas de “Motel Destino” são seres meio quebrados, incompletos, danificados, mas mesmo aprisionados nesse ciclo de expulsão do paraíso, purgatório e inferno – num longa marcado por tríades: Heraldo/Dayana/Elias; céu/purgatório/inferno – eles encontram prazer nele. Resta saber se o motel é como o Hotel California da canção, ou se eles são capazes de escapar dessa prisão.

Nota:

"Motel Destino" (2024), de Karim Aïnouz - Pandora Filmes/Divulgação
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Crítica produzida durante a cobertura do 77º Festival de Cannes para o cinematório.

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