O que pode uma senhora idosa morando sozinha no Rio de Janeiro? Pode fazer caminhadas na praia, ter amizades e inimizades pelo bairro, acolher e ser acolhida por uma criança e desmascarar um esquema de associação criminosa da polícia com o tráfico. Este é o enredo de “Vitória”, filme de Andrucha Waddington com Fernanda Montenegro no papel principal. Em uma narrativa dinâmica, o filme se equilibra entre temas pesados, como o domínio do tráfico e a corrupção policial, e temas sensíveis, como a autonomia na terceira idade, a solidão em diferentes fases da vida e a criação de ambientes de afeto, o que o torna um bom caminho para a continuidade da atenção ao cinema brasileiro após o fenômeno de “Ainda Estou Aqui”.
O filme é inspirado na história real de dona Joana, narrada em livro pelo jornalista Fábio Gusmão. O roteiro adaptado é assinado por Paula Fiúza e a direção inicialmente seria de Breno Silveira. Com a morte precoce do diretor, que chegou a começar as filmagens, Andrucha Waddington, seu parceiro na produtora Conspiração Filmes, foi convidado para assumir a direção.
A trama é centrada em dona Nina, essa senhora que acompanhou da janela de seu apartamento o crescimento de uma favela e a posterior ascensão do tráfico. Quando os tiroteios e as balas perdidas começaram a atingir o interior de seu apartamento, ela resolveu agir por conta própria. Diante da inépcia dos vizinhos e da polícia, comprou uma filmadora para registrar os fatos e produzir provas. Nesse contexto, entra em cena a figura do jornalista Flávio, que apoia dona Nina na denúncia. Com o decorrer dos fatos, ela precisa entrar no programa de proteção à testemunha e mudar de nome.

O enredo do filme, apesar de fazer algumas poucas referências à vida pregressa de dona Nina, concentra-se nesse episódio de denúncia, o que permite maior aprofundamento nas escolhas feitas pela personagem e nos fatos decorrentes disso. Como resultado, o filme é inicialmente mais ligado ao drama e depois tende ao thriller, com direito a perseguição de carro e tentativa de sequestro. E, ainda assim, encontra espaço para o humor, em cenas que realmente funcionam como um alívio para a crescente tensão.
A potência da atuação de Fernanda Montenegro intensifica as nuances da personagem de dona Nina, que é ao mesmo tempo afetuosa e ríspida, corajosa e frágil. Nesse sentido, as personagens coadjuvantes, apesar de não serem muito desenvolvidas, funcionam bem para construir a complexidade da personagem e descrever os universos que circundam a história. O menino Marcinho (Thawan Lucas) carrega as compras de dona Nina, recebe por isso alguns trocados e eventualmente sobe ao apartamento dela para lanchar. A vizinha Bibiana (Linn da Quebrada) também mora sozinha e constrói com dona Nina uma relação de afeto e cuidado recíprocos. Por fim, é com o jornalista Flávio (Alan Rocha) que dona Nina encontra um suporte para suas denúncias e uma rede de proteção.
A fotografia do filme, assinada por Lula Cerri, reforça o contraste entre os ambientes frequentados por dona Nina. As cenas na praia, por exemplo, com uma luz fria, mostram a personagem sozinha no centro de um grande espaço vazio. Quando ela volta para o interior do bairro, as ruas são movimentadas e iluminadas por esse mesmo tom. Por outro lado, nas cenas no interior do apartamento, o ambiente é tomado por uma penumbra aconchegante e preenchido pelos muitos objetos dessa senhora. Esse contraste intensifica a distância entre a segurança da vida íntima da personagem e a frieza do ambiente público, sugerindo o motivo pelo qual ela optou por, a princípio, permanecer ali.

O filme acerta ao se concentrar no olhar curioso de sua protagonista e evitar a exploração de uma perspectiva maniqueísta entre os do asfalto e os da favela. Na única cena em que a câmera sobe o morro, percebemos a presença de pessoas comuns em suas rotinas cotidianas, afastando a imagem de que aquelas pessoas do tráfico representam a comunidade. Assim, mesmo sem aprofundar nesse ponto, o filme propõe uma reflexão sobre os poderes paralelos que agem nesses espaços.
Apesar de ser, como tantos outros, um filme sobre a influência do tráfico e a conivência da polícia, “Vitória” traz um ponto de vista original ao contar a história pela perspectiva de uma senhora idosa que observa os fatos e reage a eles. E, paralelamente, aborda temas sensíveis como o potencial de agência na terceira idade e a solidão comum nas grandes cidades, que afeta dona Nina, Bibiana e Marcinho – e como eles se fortalecem quando juntos, em oposição à ideia de vidas em isolamento nos centros urbanos.
“Vitória”, dessa forma, promove uma experiência que agrada pela grandiosa atuação de Fernanda Montenegro, pela qualidade do elenco de coadjuvantes, pelo cuidado com os aspectos técnicos e pela história que, na tela, provoca reflexões relevantes e harmoniza diferentes sensações como o riso, a tensão e o conforto. ■
VITÓRIA (2025, Brasil) Direção: Andrucha Waddington; Roteiro: Paula Fiuza (baseado no livro de Fábio Gusmão; Produção: Andrucha Waddington, Mayra Faour Auad, Renata Brandão, Breno Silveira; Fotografia: Lula Cerri; Montagem: Sérgio Mekler; Com: Fernanda Montenegro, Linn da Quebrada, Thawan Lucas, Alan Rocha, Sacha Bali, Jeniffer Dias; Estúdio: Conspiração Filmes; Distribuição: Sony Pictures; Duração: 1h 52min.
filme vitória
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