Custódia (2017) - Foto: Divulgação
Custódia (2017) - Foto: Divulgação

“Custódia”: quando a Justiça não enxerga o perigo

[Esta crítica traz detalhes de cenas do filme que podem ser considerados spoilers.]

Escrito e dirigido por Xavier Legrand, “Custódia” (Jusqu’à la garde, 2017) retrata a vida de um casal, recém-divorciado, que disputa judicialmente a guarda de seus filhos, especificamente o menor de idade, Julien.

Um filme ausente de música não diegética, silencioso, envolto em sons ambientes. Inicia-se em uma sala de audiência e a sensação transmitida pela obra é que, após o encerramento desta cena, o ambiente litigioso, de cautela constante, não se afasta das personagens, nem do que acontecerá em seguida. O primeiro take é o gancho necessário para começar a entender o conflito nuclear do filme e a buscar respostas.

A questão da guarda do filho menor é disputada pois o pai, Antonie (Denis Ménochet), deseja a guarda compartilhada da criança, mas a mãe, Miriam (Léa Drucker), é absolutamente contra a ideia, pois acusa Antonie de ser agressivo, impulsivo e descontrolado. Miriam traz ao tribunal relatos dos próprios filhos com declarações de que o pai os teria ferido em algumas ocasiões. Aqui, o espectador começa a se envolver na questão apresentada e, como é natural, tenta produzir um julgamento próprio a respeito de quem estaria com a razão. Posteriormente, descobrimos que a juíza admitiu que o pai passasse finais de semana com Julien. Essa é uma grande sacada do filme, colocando o espectador como juiz de uma situação que conseguiremos analisar devidamente apenas nos minutos finais. O filme opta por uma linearidade invertida, pela qual a verdadeira história será contada após o julgamento da causa. É uma decisão bastante interessante do roteiro e apta a provocar uma série de questões polêmicas a respeito de violência doméstica, falhas judiciais e o sentido de justiça.



Nos primeiros momentos, parece que o filme tratará de alienação parental e de disputa de poder familiar. Alienação, pois é basicamente este o questionamento que a defesa do pai traz à tona: quem garante que são verídicos e genuínos os relatos das crianças? Não seria um jogo da mãe contra o pai? E disputa de poder, pois, no decorrer do filme, percebe-se que a mãe tenta impedir o contato do pai com as crianças; algo difícil de entender pois questiona-se: se a Justiça decidiu que o pai tem o direito, por que a mãe age dessa forma? De qualquer maneira, fica nítido que a família tem questões mal resolvidas e que as crianças não foram poupadas das discussões parentais, sendo, além de motivo do litígio, um instrumento de repasse de ofensas entre os dois progenitores.

O menino se refere ao pai como “o outro”, uma forma de tratamento que revela estranheza extrema frente ao elo familiar que, teoricamente, deveria ter sido construído. Mais uma forma de mostrar que a disputa não se dá sobre a afetividade das crianças, mas sobre a relação de poder sobre elas, já que os finais de semana de Julien passados com o pai são extremamente angustiantes para quem assiste ao filme, pois os dois exibem uma relação de afastamento contínuo. O pai utiliza o garoto como meio de descobrir o que Miriam estaria fazendo, como ela vive fora do casamento. Os filhos passam a ser um pretexto para Antonie demonstrar todo o ciúme e violência aflorados no seu interior. E é essa a percepção que temos, durante os encontros de pai e filho: Antonie revela ter uma personalidade violenta, grosseira.

O clímax de “Custódia” ocorre da metade para o fim. É nesse tempo que fica mais nítida, também, a existência de proximidade entre Miriam e os filhos. A percepção do espectador sobre os acontecimentos começa a se transformar. Essa situação de dúvida é uma provocação, essencial para o argumento do filme, pois, sem ela, teríamos uma obra muito rasa e imediata. Nesse ínterim, algumas cenas revelam a vida da outra filha do ex-casal, Joséphine (Mathilde Auneveux), personagem de participação absolutamente secundária. De qualquer forma, o clímax vai sendo construído e a sensação é de que, a qualquer tempo, algo terrível acontecerá, pois Antoine se mostra, em doses homeopáticas, mais e mais descontrolado.

A dúvida e a falta de precaução em uma decisão judicial podem trazer riscos irretratáveis. No Brasil, por exemplo, mulheres que denunciam seus companheiros, ou que buscam ajuda em situações de estupro ou assédio ainda sofrem com a baixa credibilidade dada aos seus relatos. Ao ato final do filme, rememoram-se todas as situações de violência doméstica e feminicídio que vemos escancaradamente em nossa sociedade e que poderiam ter sido evitadas se não houvesse machismo institucionalizado, se os órgãos públicos de proteção e defesa adotassem posturas diferentes quando da observância da proteção às mulheres e crianças e, principalmente, se o judiciário estivesse mais atento ao tipo de julgamento que promove e das provas que analisa. Em “Custódia”, Miriam acusa o companheiro de violência contra os filhos e ele a contradiz. As provas trazidas pela mãe não têm a força necessária, mas a juíza do caso decidiu a favor de Antoine, ainda que pudesse estar frente a um caso de violência. Em suma, ela não teve a postura de decidir por maiores medidas protetivas. Ponderar o peso do justo e injusto é algo muito difícil e é um desafio dentro do judiciário mundial.

Faço menção honrosa às cenas finais. O choro desesperado de mãe e filho na banheira do apartamento, enquanto aguardam a polícia chegar para prender Antoine, toma um tempo sensivelmente longo do filme e consegue transmitir toda a angústia de seu ápice até o término, através de atuações espetaculares, principalmente do garoto Julien, interpretado por Thomas Gioria.  E o último plano, no qual, visualizamos o apartamento da família Besson pelo olhar de uma vizinha, em primeira pessoa. Disso entendo que, primeiro, fomos o tempo todo espectadores dessa violência e, assim como a juíza, duvidamos do depoimento de uma mulher vítima. O olhar que Miriam lança à vizinha se volta diretamente para nós. Somos estranhos que observam, mas também responsáveis pelo julgamento. Além disso, é também um momento em que se fecham as portas dos apartamentos, mostrando que, finalmente aquilo se encerrou, o terror da vida daquela família acabara ali, a porta da história se fecha e o terror termina. A quase tragédia foi, afinal, a prova cabal para acalentar nossa pretensão de “justiça”. Só que, infelizmente, na vida real, nem sempre a justiça chega a tempo. ■

“Custódia” está em cartaz nos cinemas.