Comer, Rezar, Amar

Apesar de serem bem diferentes a princípio, há uma semelhança entre o seriado “Glee” e “Comer, Rezar, Amar” no que diz respeito a Ryan Murphy, criador do primeiro e diretor e roteirista do segundo. Murphy não se leva nem um pouco a sério. Quer apenas divertir. E sacrifica a sua narrativa em nome desse entretenimento. Em outras palavras, suas histórias são apenas uma desculpa para cenas divertidas ou que causam bem-estar nos espectadores.
Vejamos o caso de “Glee”. Seu pontapé inicial é dado por um professor de espanhol que tenta reerguer o coral do colégio onde trabalha (e onde estudou) que, um dia, foi motivo de orgulho. O projeto atrai uma série de alunos talentosos. Ele são, porém, os típicos losers americanos, minorias, nerds etc. Como se trata de um colégio conservador, o professor percebe que o projeto só atrairia financiamento se alguns alunos populares, bonitos e fortes se juntassem a eles.
Se “Glee” for analisado friamente, é perceptível que não tem uma estrutura sólida. Os personagens mudam demais. Só para deixar um exemplo, há um episódio no qual Rachel Barry, a protagonista, se apaixona perdidamente pelo professor. Em nenhum momento anterior ela deu a menor pista que sentiria qualquer afeição por ele. Mas, como é um episódio de baladas românticas, ninguém achou estranho mudar completamente a personalidade de um personagem se é para o bem da música. Seria algo como se Homer, em um episódio dos Simpsons, deixasse de ser o bobalhão que é e virasse um poço de sensatez.
É arriscado mudar a personalidade dos personagens em seriados. É um produto narrativo criado para durar um tempo maior. Portanto, quem o acompanha, se afeiçoa pelos personagens do jeito que eles são e uma mudança é um risco. Mas, em “Glee”, a sensação que dá é que os episódios são criados a partir das cenas musicais e de referências à cultura pop. Dessa forma, sacrificar o roteiro em nome da diversão parece não ser um problema para Murphy.
Em “Comer, Rezar, Amar” existe a mesma falta de preocupação com a história em nome de um outro objetivo: fazer o público se sentir bem. É essa a intenção quando Liz Gilbert (Julia Roberts), na Itália, devora uma pizza inteira sem culpa, percebe que a numeração da calça que usava aumentou e conclui que “tudo bem, o mundo não mudou porque ela engordou, a vida não acabou porque ela não seguiu as regras da beleza”. Liz, ao longo do filme, aprende a curtir os prazeres da vida e percebe que tem muita coisa boa a se tirar disso. É um filme que tenta dar aquela sensação de espírito revigorado, de alma satisfeita. O que não surpreende, porque é o que a gente espera de um livro de auto-ajuda.
Daí nasce o perigo das adaptações desse tipo de obra. Não li muitas, mas elas não tem muito de visual. É, basicamente, um autor dando conselhos a partir de uma teoria qualquer ou relatando experiências pessoais que, de alguma forma, acreditam inspirar as pessoas. E, provavelmente, dão a sensação de saciedade, afinal, são livros que normalmente encabeçam a lista de mais vendidos. Se alguém resolve adaptar um livro de auto-ajuda para o cinema é preciso pensar em certos aspectos. Um roteirista pode adaptar a lista telefônica, se quiser. Mas, se vai se arriscar a isso, seria preciso um ponto de vista, uma história a ser contada e a ideia de que o cinema é uma arte, acima de tudo, visual.
Passamos quase duas horas e meia vendo a personagem de Julia Roberts em busca de equilíbrio. Mas como Ryan Murphy parece incapaz de demonstrar sua mudança através de atitudes, do desempenho de Roberts ou de qualquer outro artifício visual, ele se volta para o texto. Tudo que está mudando na vida de Gilbert é colocado através de diálogos. Ela e outras personagens parecem ser pseudo-gurus ambulantes. Mas as atitudes de Gilbert, no começo da viagem para o fim da viagem, não parecem ter uma mudança significativa. Por mais que ela fale, é difícil acreditar que algo realmente mudou.
Daí, retorno à comparação entre “Glee” e “Comer, Rezar, Amar”. Se “Glee” sacrifica sua narrativa pela diversão e pela cultura pop, “Comer, Rezar, Amar” (o filme) pega de “Comer, Rezar, Amar” (o livro) uma narrativa que já não tinha como dar muito certo no cinema, apenas em nome do bem-estar. Mas a diferença é que “Glee” consegue se sustentar como um produto de entretenimento (superestimado, que não merece metade dos prêmios que ganha, mas, mesmo assim, divertido) com suas canções e referências. Já “Comer, Rezar, Amar” pode até enganar com suas mensagens de equilíbrio e de “busca do ‘eu’ interior”. Não esconde, entretanto, um filme longo, superficial e uma protagonista com quem ninguém se importa muito e que não existe a favor de uma história. A jornada de Gilbert pode funcionar como um livro de auto-ajuda. Mas como cinema é frustrante.
Comer, Rezar, Amar (Eat Pray Love, 2010, EUA)
direção: Ryan Murphy; roteiro: Ryan Murphy, Jennifer Salt (baseado no livro de Elizabeth Gilbert); fotografia: Robert Richardson; montagem: Bradley Buecker; música: Dario Marianelli; produção: Dede Gardner; com: Julia Roberts, Billy Crudup, Viola Davis, James Franco, Richard Jenkins, Javier Bardem; estúdio: Columbia Pictures, Plan B Entertainment; distribuição: Columbia Pictures, Sony Pictures. 133 min