Harry Potter e as Relíquias da Morte

Exatos 10 anos separam o primeiro e o último filme da saga de Harry Potter. Fenômeno de vendas nas livrarias, a franquia se consolidou como marca fortemente rentável nas mais diversas plataformas comerciais, a ponto de se tornar parte da rotina de todos que produzem e consomem entretenimento. Assim, após uma década de aulas de feitiços, viagens em vassouras voadoras e duelos de varinhas mágicas, o mais difícil seria o diretor David Yates errar na parte final – ainda mais considerando que ele também realizou os três últimos longas da série.

“Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 2” não é uma obra-prima, mas nem precisava ser. É exatamente o filme que os fãs querem ver e que precisava ser feito para o encerramento ser entregue com dignidade.



Há que se levantar uma questão quanto a esses dois últimos capítulos da franquia nas telas. A história de ambos é contada em um único livro, mas, para o cinema (provavelmente, por razões de marketing), ela foi dividida em dois filmes. Ao que consta, tudo foi rodado simultaneamente. Mas é notável como a Parte 1 difere da seguinte em tom e ritmo, e também se sai como o mais distinto dos oito filmes, fugindo inclusive do padrão estético dos demais.

Na Parte 1, Yates explora mais a cadência dos diálogos e das atuações do trio principal de atores (Daniel Radcliffe, Emma Watson e Rupert Grint) e trabalha a história de fuga como uma trama em que Harry Potter se torna, na prática, um perseguido político no âmbito da fantasia, unido a companheiros de guerrilha para combater um ditador (o Lorde Voldemort de Ralph Fiennes, que está a um passo de dominar o mundo dos bruxos).

Harry se disfarça para roubar e até se exila. É claro que essa abordagem se limita ao lado romantizado da guerrilha, sem se aprofundar ideologicamente. E não é uma abordagem inédita nos filmes de fantasia (a Aliança Rebelde de “Star Wars” é o exemplo imediato que tenho em mente). De toda forma, funciona e permite a Yates trabalhar uma atmosfera que foge da zona de conforto da série. E ele faz isso muito bem.

Já a Parte 2 concentra-se mais na ação e, finalmente, leva os personagens principais de volta à escola de magia de Hogwarts, palco para o derradeiro confronto entre Harry e Voldemort. O duelo é épico e realizado de maneira satisfatória por Yates, que não só aqui, mas ao longo de todo o filme, explora muito bem o uso dos efeitos visuais. Sua direção amadureceu junto com os atores ao longo dos quatro últimos anos, mas ainda é trôpega aqui e ali, especialmente quando ele insiste em movimentar demais a câmera ou fazer cortes incoerentes para diferentes ângulos durante simples cenas de diálogo. Além disso, ainda lhe falta tratar a transição entre algumas sequências com mais sutileza.

Todos esses problemas estéticos não fogem aos olhos. Estão lá e empobrecem o filme visualmente. Para quem é cinéfilo, para quem analisa filmes por hábito, incomoda. Mas estou longe de condenar aqui este e os demais filmes da série. Nunca fui fã da franquia, mas sei como é ser um fã. Todos sabem da minha admiração, que beira o fanatismo, por Star Wars. E eu vejo todos os problemas dos filmes, especialmente os dirigidos por George Lucas. Mas mesmo assumindo esses problemas, eu consigo gostar de Star Wars. Para os fãs de Harry Potter (e de Star Trek, James Bond, Indiana Jones, O Senhor dos Anéis, Crepúsculo etc.) eu imagino que seja a mesma coisa – pelo menos para aqueles que possuem uma visão mais crítica; gostar sem saber o motivo é que não dá.

O ponto é que gostar ou não gostar só importa para a pessoa. O que interessa na discussão crítica é a leitura que se faz de um filme e o que se extrai dela. Dito isto, tudo termina em “As Relíquias da Morte: Parte 2”, mas o ponto alto é a conclusão de uma trama que correu subentendida ao combate entre os dois antagonistas e envolve o professor Severo Snape, interpretado brilhantemente por Alan Rickman durante os oito filmes.

A luta maior de Harry e Voldemort ao longo de toda a saga talvez tenha sido para tentarem ser mais do que representantes bidimensionais do Bem e do Mal. Já Snape, por trás de todo seu divertido sarcasmo, surpreende nesta parte final ao revelar-se o personagem mais desenvolvido e trágico criado pela autora J.K. Rowling. É incrível como seu drama pessoal influencia toda a saga e dá um novo sentido a ela, mas não entro em detalhes para evitar os spoilers. Só pela amarração dessa trama paralela, já fiquei pessoalmente satisfeito com o filme e recompensado por sempre ter tido Snape como a figura mais instingante de Hogwarts.

Harry Potter e as Relíquias da Morte: Parte 1/Parte 2 (Harry Potter and the Deathly Hallows: Part 1/Part 2, 2010/ 2011, Reino Unido/EUA)
direção: David Yates; roteiro: Steve Kloves (baseado no livro de J.K. Rowling); fotografia: Eduardo Serra; montagem: Mark Day; música: Alexandre Desplat; produção: David Barron, David Heyman, J.K. Rowling; com: Daniel Radcliffe, Ralph Fiennes, Rupert Grint, Emma Watson, Alan Rickman, Michael Gambon, Maggie Smith, Evanna Lynch, Domhnall Gleeson, Clémence Poésy, Warwick Davis, John Hurt, Helena Bonham Carter, Robbie Coltrane, Kelly Macdonald, Jason Isaacs, Helen McCrory, Tom Felton, Ciarán Hinds, Matthew Lewis, Devon Murray, Bonnie Wright, David Thewlis, Julie Walters, Mark Williams, James Phelps, Oliver Phelps, Chris Rankin, David Bradley, Geraldine Somerville, Adrian Rawlins, Gary Oldman, Sean Biggerstaff, Emma Thompson, Jim Broadbent; estúdio: Heyday Films, Moving Picture Company, Warner Bros.; distribuição: Warner Bros. 130 min