41ª MOSTRA DE SP: “O Dia Depois”, “Visages, Villages”, “Construindo Pontes” e “Praça Paris”

por Isabel Wittmann, especial para o cinematório

Nessa terceira etapa de filmes vistos na Mostra que compartilho com vocês, encontrei boas surpresas: filmes gostosos, intensos, divertidos, emocionantes, para todos os gostos. Abaixo seguem as resenhas. E para ler todas as que já publicamos, clique aqui.



“O Dia Depois” (Geu-hu, 2017), de Hang Song-Soo 

O cineasta coreano Hang Song-Soo tem lançado um filme atrás do outro utilizando como combustível para a criação suas próprias vivências. O diretor, com quase sessenta anos e casado, mantem um relacionamento com a atriz Kim Min-hee, com quem começou a trabalhar em “Certo Agora, Errado Antes”, de 2015. Como a arte espelha a vida (e vice-versa), o fato tem servido para inspirar suas obras com divagações sobre relacionamentos, infidelidades e hierarquias de trabalho e idade.

Dessa vez a história é a de um dono de editora, Bongwan (Hae-hyo Kwon), que contrata uma nova secretária, Areum (Kim Min-hee). O primeiro contato é de excesso de intimidade e já envolve convite para almoço e conversas pessoais. Ele pede que ela o trate com mais informalidade, ao mesmo tempo que espera o tratamento de “chefe”. Logo no primeiro dia de trabalho, Areum é abordada pela esposa do chefe, que encontrou um bilhete em sua casa e assim descobriu que ele mantém um caso com uma funcionária. A pessoa do bilhete era a secretária anterior, mas a esposa não tinha como saber da mudança.

Fazendo o uso de seu zoom característico, evitando cortes e trabalhando em longos planos fotografados em preto e branco, Song-Soo traz novamente ótimo diálogos, discutindo as particularidades e momentos da vida ao redor da mesa, em meio a muita comida e muita bebida. O álcool solta a língua de seus personagens, como em outros filmes, e verdades afloram. A temática do relacionamento extraconjugal de um homem mais velho com a moça mais nova emerge novamente, mas dessa vez focado no egocentrismo e na fragilidade do homem, em detrimento das mulheres ao seu redor. Trata-se de um filme fortemente baseado no diálogo e eles conseguem sustentar a narrativa de maneira fluida, permitindo que o espectador mergulhe na banalidade cotidiana daquelas vidas.

“Visages, Villages” (2017), de Agnès Varda e JR

Agnès Varda é sem dúvida uma figura cativante. Aos 89 anos, dos quais mais de sessenta foram dedicados ao cinema, a diretora vive uma fase de reconhecimento pleno e em breve será homenageada com um Oscar honorário por sua trajetória, fato que ironiza, uma vez que mesmo esse seu filme mais recente foi realizado através de financiamento coletivo, como pode ser conferido logo nos agradecimentos dos créditos de abertura. Mas a incansável senhora de cabelo bicolor é uma colecionadora de pessoas e suas histórias, transformando-as em suas deliciosas narrativas audiovisuais.

Em seu novo documentário firmou parceria com o fotógrafo e artista JR. O jovem costuma viajar em seu furgão devidamente adesivado com a imagem de uma câmera fotográfica na lateral e tirar fotos de pessoas comuns, que são impressas e muitas vezes aplicadas a grandes elementos verticais, como muros e paredes, criando murais. Varda resolve acompanha-lo pelos vilarejos do interior da França e coletar os rostos das pessoas que conhece pelo caminho, enquanto entabula diálogos com elas.

A primeira, Jeannine, é uma senhora que mora em um antigo conjunto de casas de mineiros, profissão exercida por seu pai. Ela diz que não pretende sair da casa, por mais que seja pressionada, sendo a última moradora (como uma Clara em seu “Aquarius”). É homenageada com um painel que cobre toda a fachada. E esse é só um exemplo: Varda está interessada nos pequenos detalhes das vidas das pessoas, mas traz também momentos da sua própria, além de um olho treinado para a visualidade, que compõe cenas belíssimas, com humor e sensibilidade sempre presentes, das pessoas, das obras, das paisagens e de sua combinação.

JR é um bom contraponto a ela: às vezes pesa um pouco a arrogância e o excesso de certezas da juventude, mas seu desejo de embarcar integralmente no projeto se mostra efetivo. Além disso, apesar da diferença geracional, a comunicação entre os dois é bonita de se observar. Mas no final das contas, o filme funciona essencialmente por causa de Varda. Essa figura simpática e carismática, que produz encantamento por onde passa e, apesar de algumas limitações físicas, ainda se preocupa com o criar. O resultado é um filme leve, que faz rir e chorar e a reafirmação de seu talento. O mundo precisa de mais Vardas: pessoas com alma intensa, que respiram arte e sabem transmiti-la.  

“Construindo Pontes” (2017), de Heloísa Passos

Sem ler nada a respeito do filme, apenas confiando na direção de Heloisa Passos (fotógrafa do recente “Mulher do Pai”), após as primeiras cenas me peguei pensando que se tratava de um documentário sobre grandes obras de engenharia, especialmente hidrelétricas, e no impacto que elas acarretam, especialmente nos modos de vida tradicionais. Não poderia estar mais errada. Mas certa também.

As pistas entendidas de maneira errada vieram de gravações caseiras com que a diretora foi presenteada que mostram a ação dos explosivos nas cachoeiras de Sete Quedas, no que viria a ser a Usina de Itaipu. Depois vemos a atual área alagada, com um trabalho de som que sobrepõe essa paisagem com o barulho das máquinas que um dia trabalharam no local.

Mas essa introdução serve para localizar o espectador nas pontes que realmente precisam ser construídas: Heloísa é filha de um engenheiro que trabalhou nos grandes projetos dos governos da ditatura militar no Brasil. Seu pai defende que esse foi o único momento em que o país teve um projeto nacional de desenvolvimento. Pessoas foram mortas, sim, mas isso é outra coisa, segundo ele. E aí é que se cria um abismo que separa pai e filha há décadas, afinal, conforme a narração da própria diretora “família é o não dito”.

Com a câmera parada, o cotidiano doméstico e familiar é retratado com certo distanciamento. Talvez o maior problema do documentário seja que não consegue estruturar uma linha de raciocínio por parte dos debatedores. A diretora rebate as falas do pai e ele faz o mesmo com ela, mas nenhum dos dois apresentam argumentos sólidos para seu posicionamento e muitas vezes a sensação é de estar presenciando uma discussão parecida demais com aquelas das redes sociais.

Por outro lado, a impressão de proximidade pode ser muito grande. Provavelmente diversos espectadores verão a si e a seus pais, mesmo que de outras maneiras e em graus diferentes, retratados nos diálogos que se apresentam ou nas tentativas frustradas de levá-los adiante. Em tempos de fortalecimento de discursos extremistas, devemos nos preparar para o diálogo. Ou, dependendo do contexto familiar, para lidar com os silêncios. 

“Praça Paris” (2017), de Lúcia Murat 

Glória (Grace Passô) é ascensorista em uma universidade na cidade do Rio de Janeiro. Dos prédios de arquitetura marcante onde trabalha, é possível ver a favela onde reside: são duas cidades em uma só, dois territórios com leis diferentes e com diferentes perspectivas de trajetória para seus moradores. Glória convive com a violência, na forma do abuso sexual impingido pelo seu pai, desde muito cedo. Hoje visita sempre o irmão, Jonas (Alex Brasil), na cadeia, onde cumpre pena pelo seu envolvimento com o tráfico, levando a ele uma marmita com comida caseira que prepara com carinho.

Devido às grandes dores que carrega consigo, Glória passa a se consultar semanalmente com a psicóloga Camila (Joana de Verona), uma portuguesa que veio ao Brasil para pesquisar os efeitos da violência. Seu cotidiano é justamente preenchido pela violência, seja no tiroteio que a impede de voltar para casa, seja na surra levada da polícia, que sabe do papel que seu irmão ocupa, mesmo encarcerado. Mas a conexão entre as duas é difícil: nada que Camila já tenha vivido abarca as experiências de Glória. Em cima de sua mesa é enquadrado um livro sobre psicanálise e empatia, mostrando sua vontade de criar canais de comunicação. Mas ela mesma se descobre perdida, espelhando sua avó, sempre presente, na beira do abismo.

A relação entre as duas, descompassada, não é pautada só nas diferenças étnico-raciais e de classe, mas também em um certo olhar colonial da estrangeira que anedoticamente ainda pensa no Brasil como um lugar exótico de hábitos bárbaros, como confrontada por um comentário de seu namorado. As trajetórias das duas protagonistas se entrelaçam, ao mesmo tempo que se distanciam nos mínimos detalhes: nas roupas, nos meios de transporte, na configuração de suas casas.

O elenco todo é competente, mas Grace Passô se destaca: o que ela consegue fazer apenas com o olhar não é para muitos, especialmente quando transmite os momentos de doçura da personagem. Ela merecia mais espaço na trama, em relação à outra protagonista, igualmente necessária, mas menos interessante.

O filme flerta com o cinema de gênero, construindo suspense na paranoia branca da psicóloga. Ao conviver com os relatos de Glória, passa a acreditar que ela mesma será envolvida por aquelas violências. Não consegue entender os contextos relacionais que os levam a acontecerem. Trancafiada em seu consultório, suando com o ventilador ligado e o ambiente repleto de fumaça de cigarro, vive um noir tropical. A beleza está no fato de que o suspense só é possível se o espectador comprar o discurso que está sendo vendido, como se ao ajudar as pessoas que morem na favela, invariavelmente algo de ruim se voltará contra você. Utilizando no limite estereótipos que podem ser perigosos, o filme se segura na direção para que eles não se confirmem, apoiando-se, também, na cumplicidade de quem o assiste.


Isabel Wittmann é crítica de cinema, doutoranda em Antropologia Social na USP, autora do blog Estante da Sala e uma das criadoras do podcast Feito Por Elas.