Jacques Tati em "Carrossel da Esperança" (1949) - Foto: Divulgação

“Carrossel da Esperança”: ingenuidade e deslumbramento

por Pedro Tobias

O diretor Jacques Tati rodou “Carrossel da Esperança” em 1947 com a intenção de lançá-lo colorido, mas por conta do ineditismo da técnica, ainda incipiente, acabou mantendo a cópia em preto e branco, lançada dois anos depois. Graças ao trabalho encabeçado por Sophie Tatischeff (filha de Tati) e François Ede em 1995, hoje é possível assistir ao filme tal qual o diretor havia pensado.

Ainda dando os primeiros passos como realizador e longe de alcançar o senso crítico que o consagrou anos mais tarde em “Playtime – Tempo de Diversão”, Tati traz em seu primeiro longa sua bagagem cômica e empresta de seu curta anterior, “Escola de Carteiros”, o protagonista, François le Facteur, interpretado pelo próprio diretor.



Acompanhamos uma corruptela no interior da França durante os preparativos para uma grande festa, daí o título original “Jour de Fête” (“Dia de Festa”, em português). Aos poucos somos introduzidos aos personagens que de alguma forma compõem a mise-en-scène pretendida por Tati: as crianças, o dono do bar, o prefeito, a senhora idosa que aparece pontualmente como narradora e, é claro, François.

O protagonista é apresentado após pouco mais de 10 minutos de projeção em uma das cenas mais cômicas do filme. O mastro central do carrossel que chegou à cidade para a festa, precisa ser colocado no centro da praça principal e o atrapalhado carteiro aparece para “ajudar”.

O humor de Tati, muito físico – herança do teatro –, é muito bem explorado visualmente e através do som. O cineasta usa e abusa do foley para pontuar as inúmeras gags ao longo do filme. Aqui talvez surja a crítica mais contundente a “Carrossel da Esperança”, o fato de ser um filme “all over the place”. O fio condutor da trama, a festa, aparece apenas como desculpa para colocar François diante de uma enorme gama de possibilidades para que o ator possa explorar seu range cômico. Não que isso ocorra de forma gratuita. Tati até consegue amarrar bem suas cenas, muito graças ao trabalho de montagem inicial de Marcel Morreau, que havia trabalhado com ele no curta “Escola de Carteiros” e, quando da remontagem do filme em 1995, de Sophie Tatischeff.

Cada cena é explorada muito bem também graças ao trabalho de Tati na composição de seus planos. Avesso a closes, pois considerava que isso interferia no trabalho de atuação, o cineasta faz uso constante de tomadas mais abertas intercaladas a planos de detalhe dos objetos cênicos usados em cada cena.

O brilhantismo do seu humor vem justamente da simplicidade do dia-a-dia. Um dos passatempos favoritos de Tati era justamente observar o vai-e-vem das pessoas a fim de buscar inspiração para seus filmes. Ele próprio se considerava o “Dom Quixote do cinema” na medida em que a expressão abrangia completamente seu senso de idealismo, imaginação e generosidade.

A genialidade do cinema de Tati se encontra na simplicidade de seus temas. Em “Carrossel da Esperança”, ele deu seus primeiros e decisivos passos rumo a uma carreira que influenciou e até hoje influencia a forma de se fazer humor no cinema. François representa a ingenuidade e o deslumbramento diante de um mundo em rota de colisão inevitável com o moderno, tema dos filmes seguintes de Tati.