"Meu Tio" (Mon oncle, 1958) - Foto: Divulgação
"Meu Tio" (Mon oncle, 1958) - Foto: Divulgação

“Meu Tio”: o modernismo leviano de uma sociedade fútil

por Fernando Machado

Poucos diretores conseguiram retratar a modernidade tão bem quanto o francês Jacques Tati. Seu cinema é repleto de reflexões acerca da estrutura social na qual somos inseridos, e “Meu Tio”, de 1959, é um exemplar perfeito dessa relação, modernidade vs. sociedade.

Em “Meu Tio”, Tati volta a nos agraciar com a inocência impoluta de Sr. Hulot, que visita sua irmã, Madame Arpel,  uma senhora obcecada pela tecnologia empregada em sua futurista residência. O filme abre mostrando uma construção civil onde as placas informativas formam os créditos iniciais. Dessa forma, Tati nos apresenta uma sociedade ainda em processo de construção e estruturando suas bases. Vemos ali trabalhadores utilizando-se de imensos maquinários que criam gigantescos pilares, que metaforicamente formam as bases da nossa sociedade. Na cena seguinte, somos apresentados a um grupo de cãezinhos brincando descompromissadamente em um bairro simples. Eles brincam no lixo, pisam poças d’água, atravessam uma área no bairro em ruínas e chegam a um bairro moderno, onde um dos cães entra na futurista casa do casal Arpel. Parece aleatório, mas guarde essa cena, pois voltaremos a ela posteriormente.



Após essa abertura cheia de metáforas, somos apresentados ao casal Arpel e sua casa. A modernidade está presente em todos os cômodos da casa, desde o quintal que conta com um chafariz, de gosto no mínimo questionável, até a cozinha que mais parece um laboratório robotizado. Tudo em cena é composto para ressaltar a futilidade de todos aqueles gadgets. A tecnologia que serviria de ajuda nas tarefas domésticas da Sra. Arpel torna-se um entrave, pois seu manuseio é mais complicado do que o trabalho manual feito sem ela. É parecido com aquela pessoa que perde cinco minutos tentando fazer com que o smartphone execute uma função oriunda de um comando de voz, ao invés de simplesmente teclar o que deseja.

Tati preenche a tela com um fotografia acinzentada, reforçando a frieza daquele lugar e expondo uma arquitetura desumanizada. Em contraste com isso, a vila onde o Sr. Hulot mora é composta por cores quentes que conferem um aconchego inexistente na casa dos Arpel. Além do contraste na fotografia, Tati faz questão de mostrar a mentalidade distinta entre aqueles moradores. Se na casa futurista a Madame Arpel se dedica obsessivamente à limpeza do ambiente, na simplicidade do bairro onde mora o Sr. Hulot isso é totalmente secundário. Há um personagem que, toda vez que tenta limpar um montinho de lixo varrido, é distraído por algo ou alguém. Aqui, Tati não está dizendo que aquele personagem é sujo. O que ele quer nos mostrar é a diferença de mentalidade. A vida naquele bairro era simples, mas as pessoas interagiam entre si. Havia conversas de bar, brigas, amizades, festas. Já na casa dos Arpel, eles se orgulham de que os eletrodomésticos da casa se comuniquem entre si, quando eles mesmos não se comunicam, tanto entre eles, quanto com seu filho, Gerard.

Para falarmos do filho do casal, precisamos voltar à primeira cena do filme com os cãezinhos. Ela termina com o animal retornando a sua casa, no caso, da família Arpel. No finalzinho da cena, a Sra. Arpel briga com o cãozinho por ele estar sujo. É visível que ele não está sujo, logo, a sujeira do qual a Sra. Arpel se referia era, na verdade, uma obsessão dela pela casa. Essa obsessão acaba se refletindo em seu filho, que vive na casa uma espécie de aprisionamento que cerceia sua liberdade de brincar. Na contramão dessa imposição, seu tio, o Sr. Hulot, torna-se a ferramenta de libertação que o jovem Gerard precisa. Sempre que o garoto está na presença de seu tio, a liberdade de brincar é oferecida, gerando ciúmes no pai.

Sr. Hulot não somente se transforma em um agente de mudança, mas também em um incômodo para o Sr. Arpel, que passa a enxergá-lo como uma ameaça à cultura moderna daquela família, para a qual apenas um elemento é mais importante do que os gadgets dispostos por toda a casa: a exibição dos mesmos. Tati mostra que a deprimente carência daquela frívola família é expressa em ostentar seus bens para todos que os visitam. Tomemos como exemplo o supracitado chafariz em formato de peixe. Sempre que alguém toca a campainha da casa, a Sra. Arpel aciona o objeto decorativo que passa a “cuspir” água. Entretanto, quando constata-se que quem tocara a campainha era, por exemplo, o Sr Hulot, o mesmo era desligado. Isso acontece porque o Sr. Hulot já mostrara não se impressionar com tais modernidades, achando, inclusive, aquilo no mínimo disforme e sem função.

O design de produção de “Meu Tio” funciona perfeitamente para escancarar as tais futilidades modernas. Aquele bairro, apesar de ser visivelmente arquitetado com o que há de mais moderno, parece lento e sem qualquer personalidade. Os carros são iguais, as fachadas das lojas, empresas e até da escola são cinzas e padronizadas, sem qualquer traço de humanidade, e é aí que reside a grande crítica de Tati. O problema não está exatamente na modernidade e sim em como ela pode tirar a humanidade de uma cidade, transformando-a em um punhado de estruturas cinzas e sem vida, onde não se consegue brincar, jogar conversa fora ou mesmo deixar cachorros livres para correr. É uma arquitetura existente para exibir avanços tecnológicos, mas que afastam as pessoas da convivência, o que a torna uma ameaça real.

Completamente alienado a essas modernidades fúteis, Sr. Hulot representa a humanidade diante de uma sociedade automatizada tanto nas ações quanto nos sentimentos. O que Tati faz em “Meu Tio” não é criticar a tecnologia em si, mas sim como nós lidamos com ela. E por mais que gadgets possam facilitar nossas vidas, elas nunca substituirão o valor do contato humano oriundo das nossas interações sociais.