“Açucena”: Filmando afetos visíveis e invisíveis

Dirigido por Isaac Donato, que também escreveu o roteiro ao lado de Marília Cunha, “Açucena” abriu bem a Mostra Aurora na programação da 24ª Mostra de Cinema de Tiradentes. O filme é muito único na forma como documenta sem ser intrusivo e evidencia que certos temas e personagens nos são lacunares. Na narrativa, acompanha-se a preparação de uma festa de aniversário de Açucena, que, segundo contam as pessoas envolvidas no evento, sempre comemora os mesmos 7 anos de idade. A aniversariante, que nunca aparece mas é sempre mencionada, se confunde com uma das senhoras que conduz a organização de tudo, Dona Guiomar. Ela é rodeada de bonecas – muitas e variadas – com as quais mantém um vínculo curioso, chegando a conversar com algumas delas como se estivessem vivas. Bonecas que também “falam”, repetem “mamãe” e outras poucas palavras, tornam essa interação estranha para o espectador, que vê de fora, entre brechas.

O filme se desenvolve no suspense de ritmo lento e enquadramentos “à espreita”, sensação reforçada pela fotografia de Flávio Rebouças. Tudo parece incompleto, fugidio. Mas somos instigados pelas “protagonistas” incomuns e o contexto tão singular, ainda que numa ambientação de fácil reconhecimento, entre casas simples, pessoas conversando enquanto trabalham, uma loja de brinquedos, as bonecas e seus acessórios. Aguçando a expectativa pelo aniversário que se prepara e pelo encontro com a personagem-título,  as perguntas “por que tantas bonecas?”, “quem é Açucena?”, entre outras, nunca são respondidas, nem mesmo na conclusão, quando chega o aguardado dia de celebração. A festa ou o ritual  oferece informações cruciais mas não explicações.

“Açucena”(2020), de Isaac Donato – Divulgação

A cor rosa, tão destacada, é o que marca o lúdico e também uma feminilidade onipresente. Estamos diante de um acontecimento realizado majoritariamente por mulheres, e que celebra a existência de uma mulher/menina. É uma cor dissonante do tom sombrio – ou ao menos acinzentado – da dúvida, do desconhecido e da trilha sonora composta por O Grivo. O rosa faz parte de um imaginário de infância e doçura. E nessa ambiguidade entre o que se reconhece e o que é oculto, as bonecas evocam a brincadeira, mas também a desconfiança humana em relação ao que não compreende. Algo muito explorado em filmes de horror, por exemplo. E, portanto, a aproximação com o gênero cabe também à provocação sobre quais repertórios simbólicos são compartilhados socialmente e quais são marginalizados.



Tecendo nós mesmos os fios propositadamente soltos – ou melhor dizendo, insólitos, mas bem selecionados e dispostos ao longo do filme – e reconhecendo o que nos escapa é que se torna possível perceber como o documentário apropria-se do estranhamento e do temor historicamente construídos sobre religiões e rituais de matriz africana para desvendar espaços, relações, objetos, práticas e partilhas culturais e afetivas pertencentes a esse universo com muito cuidado, sem os invadir, reinterpretar ou abordar de maneira reducionista. Além disso, mostra como não estamos familiarizados aos seus registros, às suas imagens e às não-imagens próprias do que que é imaterial. Como muito bem disse Ana Pi em seu filme “Noir Blue”: “Quando o invisível se torna visível, o olho demora a se acostumar”.  Assim, pelo gesto da fricção tornada sutil pelo tempo prolongado dos planos e pela observação distanciada, “Açucena” provoca e nos faz questionar o que conhecemos, o que estranhamos, nos desloca do centro para a posição de convidados discretos e respeitosos de uma celebração preciosa. ■

Nota: