"Star Wars: O Despertar da Força" (Star Wars: The Force Awakens, 2015) - Foto: Lucasfilm/Divulgação
"Star Wars: O Despertar da Força" (Star Wars: The Force Awakens, 2015) - Foto: Lucasfilm/Divulgação

“Star Wars”: O despertar da Força e a queda dos ícones

Uma das imagens mais marcantes de “Star Wars: O Despertar da Força” (Star Wars: The Force Awakens, 2015, Estados Unidos) é aquela em que Rey (personagem de Daisy Ridley), pilotando o seu speeder, atravessa o deserto entre os destroços de uma nave X-Wing e de um Star Destroyer Imperial. Uma imagem icônica criada a partir de imagens icônicas.

O planeta onde a cena se passa — e onde Rey vive — é Jakku, que parece servir como ferro-velho da galáxia. Lá, a jovem ainda aparece junto dos destroços de outros veículos de combate conhecidos dos fãs de “Star Wars“, além de objetos como o capacete usado pelos pilotos da antiga Aliança Rebelde, agora chamada de Resistência. O que o filme busca é o reconhecimento imediato do espectador que já assistiu aos filmes anteriores da série. Um divertido recurso metalinguístico que será explorado várias e várias vezes ao longo do filme, em especial nos posteriores encontros de Rey com personagens outrora protagonistas, entre eles Han Solo (papel de Harrison Ford) e seu fiel escudeiro Chewbacca (novamente Peter Mayhew).

Jakku, por si só, já carrega enorme semelhança com Tatooine, outro ícone da franquia. Sem falar na nova arma inimiga, a Starkiller, que o próprio filme cuida de demonstrar para o público — e para os personagens — se tratar de uma Estrela da Morte dez vezes maior. E há ainda as situações que remetem imediatamente ao Star Wars de 1977, desde o dróide em fuga com uma mensagem secreta até o próprio plano dos heróis para destruir a base adversária (estratégia que surge, sem acanhamento, da própria consciência dos guerreiros de que a situação que vivem é semelhante a de seus antecessores, dois deles presentes na sala, aliás).



Sim, a história se repete. E caramba, o letreiro inicial já dá a dica disso quando diz que a mesma Leia (antes Princesa, agora General) está em busca de sua “única esperança”, o último Jedi existente na galáxia (antes Obi-Wan Kenobi, agora Luke Skywalker). Toda essa repetição pode ser vista simplesmente como um louvável tributo de fãs para fãs, liderados por J.J. Abrams na dupla função de realizador e espectador do filme. Ou pode apenas passar como estratégia dos estúdios envolvidos para lucrar com as memórias da plateia. Ou, dentro de um contexto narrativo, toda essa parafernália imagística pode servir a uma construção mais interessante.

Vejamos que Rey se encontra sozinha, há anos largada em um planeta-sucata à espera do retorno de sua família. Finn, o Stormtrooper desertor (vivido por John Boyega) confidencia ao amigo piloto Poe (papel de Oscar Isaac) que nunca lhe deram um nome, somente um número de série quando foi entregue ao exército da Primeira Ordem, ainda criança. E Kylo Ren, o vilão principal (interpretado por Adam Driver) é filho de pais separados. Os três personagens têm em comum o fato de terem perdido suas bases familiares e é essa ausência que os propulsiona a buscar uma nova direção, novas referências em que possam fincar os pés para se apoiarem, cada um ao seu modo, cada um com seu objetivo particular: Rey e a materialização do mito dos Jedi e da Força; Finn e o sentimento fraternal para com os colegas de batalha; Kylo e a sombra dos Sith sobre sua genealogia. 

“O Despertar da Força” é construído por meio de um processo de ressignificação — por sinal, uma prática já recorrente em Hollywood. Vamos nos lembrar de produções como “007: Operação Skyfall” (2012) e o mais recente “007 Contra Spectre” (2015), em que a iconografia dos antigos filmes do James Bond é resgatada; de “Jurassic World” (2015), em que o dinossauro principal é um híbrido de espécies já conhecidas do público, as quais ressurgem para reivindicar seus papéis; de “O Exterminador do Futuro: Gênesis” (2015), que chega ao inimaginável ponto de refazer uma cena com o mesmo personagem e o mesmo ator, 30 anos mais tarde, para que ele confronte a sua própria imagem. Há outros e mais antigos exemplos também, como “Superman: O Retorno” (2006), um filme que cria seu próprio universo a partir da apropriação de um imaginário pré-concebido no filme de 1978, e ainda os episódios I, II e III de “Star Wars” (1999-2005), que talvez sejam os precursores, os filmes que iniciaram a bola de neve dos remakes, prequels e reboots, todos eles produtos da indústria da nostalgia em que os blockbusters se transformaram.

A diferença de todos esses filmes para “O Despertar da Força” é que nele a busca por referências se configura como uma questão engendrada em mais de uma esfera.

Primeiro porque é possível identificar na carreira de J.J. Abrams uma constante busca por referências, seja por meio de material de terceiros, como na sua reinvenção de “Star Trek” (onde ele já havia ressignificado ícones e cenas — especialmente em “Além da Escuridão”, 2013), seja por meio de material próprio, no caso, Super 8, em que ele usa o ponto de vista juvenil para reconstruir a sua própria infância/adolescência cinematográfica.

Já no campo narrativo existe a busca pela família que os três personagens principais nunca tiveram, em maior ou menor grau, além, claro, da busca por Luke Skywalker, provavelmente a principal referência para todos no filme, tanto para os que precisam de sua ajuda quanto para os que querem destruí-lo.

E imageticamente, as citações e ressignificações de ícones e cenas que o espectador conhece cumprem também a função (mercadológica, sim) de suprir uma demanda da plateia por acesso à memória afetiva (ainda que não seja uma necessidade para a totalidade dessa plateia, devemos ter em mente que lidamos aqui com o perverso fenômeno da cultura de massa).

Mas nada disso é novidade, como apontado.  O que torna “O Despertar da Força” realmente distinto é que  o processo de ressignificação só se conclui satisfatoriamente, para os personagens e para a plateia, se os ícones são deixados para trás. A única forma de avançar é abandonar, daí a importância dos ícones caídos. Rey precisa deixar para trás o seu planeta, formado por todo aquele imaginário em ruínas (análogo ao abismo do esquecimento de “Divertida Mente“), porque agora é para valer: o que era mito está se tornando realidade à sua frente, ela tem que assumir o protagonismo. Finn precisa se insubordinar, tirar o capacete, se despir da armadura, jogá-la na areia do deserto e fugir para não mais se manchar de sangue. E Kylo precisa cumprir a missão freudiana de matar o pai para atingir a maturidade, mostrando assim ao seu líder que “está pronto” (entro aqui no campo da psicologia, ciente que corro o risco de ser leviano; busquei apenas a representação edipiana do ato de Kylo, cujas implicações ainda são desconhecidas, mas que também envolve a queda de um ícone).

“O Despertar da Força” é muito consciente de suas representações e o ato de abandonar, derrubar e destruir ícones é importante para a própria franquia, para seus realizadores e para seus fãs, pois de outra forma continuariam todos condenados à paralisia eterna. É um filme libertador em vários sentidos e a mensagem de Abrams é: “sim, ‘nós estamos em casa’, aqui é bom, mas não precisamos ficar, podemos ir para um lugar melhor”. Assim confiamos. ■