Arnaud Valois em cena de "120 Batimentos por Minuto" (120 battements par minute, 2017) - Foto: Divulgação

“120 Batimentos por Minuto”: Arritmia narrativa

por Leandro Luz

Quando uma pessoa apresenta um distúrbio do batimento ou ritmo cardíaco levando o coração a bater mais rápido que o habitual, geralmente ao ultrapassar os 100 batimentos por minuto, utiliza-se o termo médico taquicardia. Sob essa alta frequência cardíaca, o coração não é capaz de bombear efetivamente o sangue rico em oxigênio para o corpo. Talvez a ambição de Robin Campillo fosse induzir seus espectadores a sentirem uma sensação semelhante, porém todos os esforços para tal acabam encontrando algumas barreiras pelo caminho.

O vencedor de quatro importantes prêmios no último Festival de Cannes transforma em ficção o cotidiano e as ações de um grupo internacional de combate ao descaso governamental frente à epidemia da AIDS que assustou o planeta nas décadas de 1980 e 1990, o ACT UP (AIDS Coalition to Unleash Power). A trama se passa em Paris e somos apresentados a diversos personagens que se relacionam entre si e procuram, de algum modo, sobreviver em um mundo caótico e repleto de preconceitos. A desinformação impera, e o ACT UP é um dos principais grupos responsáveis por tentar abraçar uma causa fundamental de saúde pública e bater de frente com os grandes pilares da indústria farmacêutica, cuja postura criminosa diante da não liberação e divulgação de novos meios de tratamento para a doença custou a morte de muita gente.



O diretor marroquino é muito eficiente ao nos transportar para esse ambiente de combate e inquietude logo na cena inicial, quando acompanhamos o primeiro dos diversos atos de protesto que o ACT UP faz ao longo do filme. Estamos diante apenas do breu e ouvimos vozes distintas, mescladas com um ruído intermitente simulando a frequência cardíaca na trilha sonora. As consequências deste ato norteiam todo o filme e provocam os embates ideológicos dentro do grupo. Este certamente é o aspecto mais instigante da obra.

Entretanto, “120 Batimentos por Minuto” possui um trabalho de montagem complexo e controverso: por mais que ofereça ao espectador uma eficaz e inteligente divisão do filme em duas partes muito bem definidas, com um controle rígido e particular de ritmo em cada uma delas, é inegável como ele parece se alongar demais. Talvez o grande problema resida no apego de Capillo ao seu próprio roteiro (escrito em parceria com Philippe Mangeot), o que provavelmente o deixou com dificuldades para cortar algumas passagens a priori impactantes pelas quais os personagens percorrem ao longo dos 143 minutos de duração. Enquanto a primeira parte é ágil e dinâmica, a segunda se opõe a esta concepção, apresentando momentos mais cadenciados e introspectivos, mais conectados ao teor dramático mesmo da história.

“Estejam cientes de que vocês, portadores do vírus ou não, serão encarados como doentes aos olhos da sociedade”, diz um dos veteranos para os quatro voluntários recém-chegados ao grupo. Entre eles está Nathan (Arnaud Valois), que escuta com atenção todas as indicações e regras minuciosas de seu líder (Antoine Reinartz). Nathan logo ele é apresentado ao radical Sean (Nahuel Pérez Biscayart) e imediatamente começa a admirá-lo, configurando, portanto, o núcleo e arco dramático principais do filme.

A morte é uma sombra incansável que permeia toda a obra, mas é apenas na segunda metade que efetivamente a enxergamos materializada. A transformação de Sean se dá aos olhos do espectador, sem jamais chamar atenção demais para si ou soar apelativa. Curiosamente, a ideia de uma distopia futurista sobre uma nova epidemia de AIDS não saía da minha cabeça ao longo de toda a projeção (não me perguntem o motivo), e talvez por isso o caráter realista e austero empregado por Campillo tenha me provocado mais uma reação morna de ter assistido a um bom filme do que algo propriamente instigante e original. No final das contas, a proposta inicial é cumprida: estamos diante de um retrato do desespero e da luta de uma geração diante de algo deveras assustador.

Há um didatismo preservado em diversas ocasiões na tentativa de evidenciar os problemas pelos quais os personagens convivem todos os dias, mas isso é compensado pela sensibilidade geral dos realizadores, sobretudo no cuidado do trabalho de som, sempre muito interessado em conferir um caráter subjetivo aos planos. Se a imagem mais marcante de “120 Batimentos por Minuto” reside num rio Sena tomado por um vermelho sangue opressor, a sequência posterior a este instante ganha uma força que jamais teria sozinha, e só desta maneira somos capazes de transformar toda a taquicardia presente desde o primeiro minuto de filme na calmaria e reflexão necessárias para o entendimento do que acabamos de vivenciar. ■

“120 Batimentos por Minuto” está em cartaz nos cinemas.