"Ferrugem" (2018) - Foto: Olhar Distribuição/Divulgação
Foto: Olhar Distribuição/Divulgação

“Ferrugem”: A câmera apontada para nós

[Esta crítica traz alguns detalhes de cenas do filme que podem ser considerados spoilers.]

Em seu segundo longa-metragem de ficção, o cineasta Aly Muritiba trabalha com temas semelhantes aos de seu filme anterior. Assim como em “Para Minha Amada Morta” (2015), em “Ferrugem” temos um personagem masculino central, embora ele comece o filme como coadjuvante e assuma o protagonismo a partir da segunda metade (abertamente intitulada como “Parte 2”, diga-se). Se no primeiro longa acompanhamos o marido obcecado por reviver memórias de sua falecida esposa, aqui seguimos o rapaz atormentado pela morte da garota com quem ficou dias antes de ela se matar. Dispositivos de vídeo também são um ponto em comum em ambos os filmes: são o meio de contato imediato entre os homens e os espectros das mulheres com quem estiveram envolvidos e cujas imagens, ressignificadas após a morte, ganham dimensão fantasmagórica e perturbadora também para a plateia.

Talvez a principal diferença entre o Fernando de “Para Minha Amada Morta” e o Renet de “Ferrugem” (papel de Giovanni de Lorenzi) seja o fato de o segundo ter um sentimento de culpa mais acentuado. Mesmo que ele esconda a verdade de todos ao seu redor até o último momento, nós, desde a primeira suspeita, temos a convicção de que ele é um dos responsáveis pela tragédia em que se transforma a vida de Tati (a estreante Tifanny Dopke), após ela ter um vídeo íntimo espalhado no grupo de WhatsApp do colégio. Nesse ponto, o roteiro assinado por Muritiba e Jessica Candal é hábil em “guardar o segredo” até o final, revelando aos poucos as informações cruciais para termos o entendimento completo de como os fatos se deram.

A inversão de protagonismo (no começo, o filme é sobre Tati, só depois percebemos ser sobre Renet) também é interessante, embora a segunda parte, mais longa que a primeira, arraste-se em algumas digressões, como a cena em que mãe e pai (Clarissa Kiste e Enrique Diaz) dialogam no carro enquanto procuram pelo filho. Entende-se que o propósito desses momentos é fornecer contexto, mesmo na morosidade, e desenvolver personagens. Mas também dá a impressão (inicial, passível de revisão) de ser gordura a ser queimada.



Se a masculinidade tóxica é um dos temas fortes de “Ferrugem” – simbolizada pelo título do filme e representada não só em Renet, mas também na forma como o pai e o primo dele (Pedro Inoue) se tratam e se relacionam com as mulheres ao redor –, a nocividade da onipresença de câmeras em nossas vidas é outro assunto do qual o longa trata muito bem. Os dois primeiros planos já provocam o espectador quanto a isso: começa com a imagem de uma moreia a encarar a câmera; em seguida é Tati quem nos lança um olhar desafiador e saca o smartphone para bater uma fotografia. A câmera está apontada para nós.

A relação metafórica entre o peixe e a garota não demora a ficar clara, até mesmo por ela verbalizar o significado em uma conversa. Já o perigo constante que ronda as vidas das pessoas dos dois lados da tela é pontuado do primeiro ao último frame. Está na nossa relação com a tecnologia e, principalmente, no mau uso que fazemos dela: ao invés de ser tratada como ferramenta auxiliar, é colocada como a coisa primeira. Isso parece especialmente danoso na vida adolescente, ao oferecer um refúgio que, antes do surgimento do smartphone, ficava restrito às conversas por telefone a portas fechadas, aos diários secretos guardados no fundo da gaveta do armário, aos rabiscos e frases soltas anotadas na última página do caderno, aos bilhetes trocados por baixo das carteiras durante a aula. As possibilidades de o conteúdo dessa comunicação oculta dos jovens vir a público eram infinitamente menores antes da revolução digital. E se um segredo era revelado lá atrás, era mais por descuido de seu dono do que por intenção. Agora, há o que podemos considerar ser um pré-bullying: há ameaça, há chantagem. A adolescência se tornou vítima prematura de uma violência psicológica sem precedentes.

Um ponto que “Ferrugem” toca é o quanto ainda não somos capazes de lidar com as brechas potencialmente danosas dessas novas tecnologias: um vídeo particular que se torna público, uma imagem manipulada que ganha outro sentido, uma conversa fora de contexto que se espalha como (pós-)verdade. Daí as relações pessoais também estarem se destruindo, oxidando, enferrujando, entre colegas e entre pais e filhos. O que deveria favorecer a comunicação acaba por ter o efeito contrário: é a vida fake compartilhada no Instagram, é a conversa fria e impessoal pelo Skype, é o olho inerte e inquisidor das câmeras de vigilância. Todos esses, não esqueçamos, mecanismos mediadores não da vida como ela é, mas de encenações, em menor ou maior grau: no caso de Tati, da pose para a foto antes do “partiu” com a turma, até a última imagem que quis compartilhar, o ato final e fatal, premeditado para que todos vissem que, para ela, não foram necessários 13, mas apenas um porquê.

Trabalhando com o fotógrafo português Rui Poças (de “O Ornitólogo”, “Severina”, “Aquele Querido Mês de Agosto” e “As Boas Maneiras”, entre outros ótimos filmes), Muritiba estabelece a relação de Tati com a imagem na própria forma do filme. A vida da garota é publicizada na internet através de câmeras. E a câmera extradiegética (isto é, o ponto de vista do narrador oculto) fica nela quase o tempo todo, em close, em detalhe, à média distância ou num quadro mais aberto. É mais o nosso olhar sobre ela do que o olhar dela sobre as coisas. E o nosso olhar masculino, que assume a segunda parte em que homens abertamente culpam mulheres sem demonstrar o menor remorso na fala. Não que “Ferrugem” se converta em mea-culpa na conclusão de sua estratégia narrativa, mas a pungência da reflexão que propõe é urgente. Novamente, a câmera está apontada para nós.

Texto publicado originalmente na Lume Scope.