“O Conto das Três Irmãs”: narrando a opressão e a imobilidade

Já pelo título “O Conto das Três Irmãs”, de Emin Alper, evoca a peça “As Três Irmãs”, obra prima do dramaturgo russo Tchékhov. A peça também narra sobre três mulheres que vivem numa comunidade interiorana, submetidas a falta de perspectivas e o desamparo de uma sociedade patriarcal rígida. No entanto, o longa-metragem não é uma adaptação direta da peça. Ainda assim, remete a ela e traça alguns diálogos com a própria arte teatral se observamos o modo como o filme se dedica aos diálogos e como faz a composição de corpos em cena na interação em pequenos espaços.

Emin Alper é um diretor turco bastante premiado. Este é seu terceiro filme, que chamou a atenção principalmente após ser exibido na edição de 2019 do Festival Internacional de Cinema de Berlim, onde competiu pelo Urso de Ouro. Ao assisti-lo fica evidente o mérito dessa indicação e da boa recepção crítica que vem recebendo, porque a qualidade técnica é indiscutível. Percebe-se o zelo na construção da mise-en-scène e das belas imagens que funcionam muito bem para o andamento de uma história simples em sua superfície, mas que também possui uma poesia, simbolismos e texturas agridoces. Isso diz muito da sensibilidade do diretor e da equipe, que não desperdiçam o poder da linguagem cinematográfica. Destaque, inclusive, para a fotografia, assinada por Emre Erkmen, inspirada numa técnica de pintura a óleo, de claro-escuro, que traz mais dramaticidade para as cenas, com uso intenso do contraste entre luz e sombra.

Interessante observar como as imagens de estradas que abrem o filme e que também aparecem em outros momentos não indicam apenas os trajetos de ida e vinda até a cidade. A forma como são filmadas também faz delas um signo de que o destino do trio de irmãs só se move conforme o carro que as leva ou as traz de volta. E claro, um carro guiado por um homem. Em nenhum sentido, seja indo ou vindo, há de fato a realização de seus desejos e ambições. É apenas o cumprimento de um caminho predeterminado pelo patriarcado e que naquele microcosmo se tornou circular. Não se sai do lugar. Aliado a isso, tem-se belíssimos enquadramentos das grandes montanhas que contornam a aldeia onde vivem os personagens, mas que reforçam a ideia de aprisionamento.



Na trama — com bases melodramáticas, mas sem nenhum exagero de roteiro e atuações –,  conhecemos essas três irmãs aos poucos. Reyhan (Cemre Ebuzziya), Nurhan (Ece Yüksel) e Havva (Helin Kandemir) são dessa aldeia antiga e pobre localizada nas montanhas de Anatólia, no interior da Turquia. Elas foram enviadas pelo pai para famílias ricas da cidade para cuidarem dos filhos dessas pessoas, mas acabaram sendo devolvidas, cada uma por um motivo. Essa prática de famílias ricas “adotando” jovens mulheres de regiões pobres na Turquia tem até um nome: as garotas são chamadas de beslemes. Mas o que parece ser para elas uma mínima possibilidade de melhoria de vida, indo para a cidade, é na verdade uma relação de exploração de trabalho, porque elas se tornam empregadas domésticas mal pagas com a ilusão de que são parte da família. E isso é algo que facilmente podemos conectar com uma realidade brasileira também, não é mesmo?

Cada personagem, individualmente, é desenvolvida com muita empatia. E quando agrupados, homens e mulheres possuem contrastes reveladores. Eles, os homens, são práticos, conversam ao ar livre, têm momentos de descanso e respiro, mas parecem performar um para o outro, não se abrem. Enquanto as moças conversam a maior parte do tempo dentro de casa e ocupadas com afazeres domésticos que nunca terminam. São atravessadas pelos afetos e há sim uma cumplicidade entre elas, mas que não acontece facilmente. Todas elas compartilham o desejo de fugir dali, mas a relação é complexa, há tensões e brigas, pois elas são colocadas numa competição que não dá para escapar. Também porque têm personalidades bem distintas e jeitos diferentes de lidar com as limitações. Com destaque para a mais velha, Reyhan, que voltou grávida da casa de família e agora tem que aturar o casamento arranjado com um pastor de ovelhas que assumiu seu filho mesmo não sendo o pai. Ela é quem carrega os maiores pesos e entrega um momento desconcertante de subversão.

"O Conto das Três Irmãs" (2019), de Emin Alper - Distribuição: Supo Mungam Films
“O Conto das Três Irmãs” (2019), de Emin Alper – Distribuição: Supo Mungam Films

Além de abordar a opressão pela qual as mulheres são submetidas, o filme acerta em também falar sobre as reverberações de uma imposição de masculinidade para os homens, especialmente através de Veysel (Kayhan Açikgöz), marido de Reyhan. Um personagem difícil, mas que é construído com tridimensionalidade e humanidade. Apesar de rude, ele é tido como covarde, um fraco pelos demais homens. E se vê sendo cobrado pelos outros, uma pressão que no caldeirão de pobreza, feridas e faltas acaba gerando consequências trágicas.

O filme não trabalha com dicotomias ou simplificações, trabalha com uma amálgama de fatores sociais de uma comunidade abandonada à própria sorte, que afetam suas subjetividades e como se relacionam. Questões de classe e relações de poder que se desvelam nas sutilezas e durezas. Quando sobem os créditos, fica a constatação de que “O Conto das Três Irmãs” é um tipo de cinema que entrega uma experiência digna das grandes telas e não somente uma contação de história, pois articula forma e conteúdo de maneira muito sofisticada, além de equilibrar bem o emocional e a crítica social. ■

Nota:

O CONTO DAS TRÊS IRMÃS (Kiz Kardesler, 2019, Turquia). Direção: Emin Alper; Roteiro: Emin Alper; Produção: Nadir Operli, Muzaffer Yildirim; Fotografia: Emre Erkmen; Montagem: Cicek Kahraman; Música: Giorgos Papaioannou, Nikos Papaioannou; Com: Cemre Ebuzziya, Ece Yüksel, Helin Kandemir, Müfit Kayacan, Kayhan Açikgöz, Kubilay Tunçer; Estúdio/Produtora: Circe Films, Horsefly Production, Komplizen Fil; Distribuição: Supo Mungam Films. 108 min