“Judas e o Messias Negro”: Entre porcos, ratos e panteras

Todos conhecem a história do homem que nasce numa família simples de judeus, em Belém, na Cisjordânia, há milhares de anos, se torna líder político e religioso, desafia o poder romano, escolhe 12 discípulos chamados de apóstolos, é traído por um deles e levado a uma cruel execução. Jesus é figura central do Cristianismo e, portanto, sua narrativa, entre elementos míticos e históricos, é uma das mais difundidas pelo mundo. E a de Judas, como aquele que o entregou aos seus algozes, também.

Já Fred Hampton e William O’Neal são nomes ainda não tão conhecidos quanto deveriam e que chegam a muita gente pela primeira vez agora, por meio do cinema. Antes tarde do que nunca. E, no contexto em que vivemos, de uma luta antirracista constante, chegam em boa hora e pelas mãos certas, com suas histórias sendo contadas por um realizador negro.

“Judas e o Messias Negro”, dirigido por Shaka King, narra como William O’Neal (vivido por LaKeith Stanfield) se infiltrou no Partido dos Panteras Negras, no final da década de 1960, a serviço do FBI, para que os agentes federais obtivessem informações do movimento e barrassem seus avanços, agindo principalmente contra o presidente da filial de Illinois do partido, Fred Hampton (Daniel Kaluuya). Hampton, cuja voz se tornava cada dia mais poderosa e revolucionária, incomodou.



Todo o processo de vigilância e perseguição do FBI culmina no assassinato desse líder, silenciado pelo Estado com apenas 21 anos de idade. Assim, além de ser uma obra envolvente pelo tema social e pela forma como é construída cinematograficamente, em ritmo de um thriller policial, o filme também está em um lugar de resgate biográfico dessas duas personalidades negras em busca da liberdade, afetadas radicalmente pelo racismo. Na trajetória da luta racial e dos direitos civis nos Estados Unidos, eles desempenharam papéis importantes — um para o bem e o outro para o mal, por assim dizer — sob circunstâncias muito tensas e complexas.

É marcante quando se ouve a frase: “Um distintivo causa mais medo do que uma arma”. Dita por O’Neal, até então apenas um ladrão de carros qualquer, ela mostra como ele estava consciente da  violência da Polícia (ou dos chamados “porcos”) que oprime e mata a população negra. E é com ela que ele explica porque escolhe se passar por um agente do FBI em seus assaltos nas ruas de Chicago. Ao ser preso, a ironia do destino: o agente do FBI Mitchell (Jesse Plemons), sob o comando do diretor J. Edgar Hoover (Martin Sheen), promete sua liberdade se ele aceitar o papel de um outro disfarce, o de membro dos Panteras Negras. Ele encara o que é proposto e o seu distintivo falso acaba se tornando, então,  um símbolo da confusão moral que ele viria a vivenciar tão intensamente a partir dali.

Na outra ponta da história, conhecemos Fred Hampton, homem inteligente, carismático, firme e dedicado integralmente à causa, com excelente oratória e capacidade de argumentação. Por onde anda e atua, mobiliza mais pessoas. Seu magnetismo é representado com naturalidade e convicção por Kaluuya. É bem interessante acompanhar como Hampton consegue aliados de outros movimentos ou até de grupos rivais da cidade. A chamada “Coalizão Arco-Íris” é um exemplo disso.

Em uma de suas campanhas, Fred conhece a escritora Deborah Johnson (Dominique Fishback). A atração entre os dois jovens ativistas é nítida e, aos poucos, um relacionamento vai sendo construído. Falta ao filme mais tempo para desenvolver também a atuação de Johnson como integrante dos Panteras Negras, que traz boas influências aos discursos do companheiro. O foco é voltado para a interação do casal, um recorte importante sobre a vida pessoal de Hampton. Afinal, grandes líderes são também pessoas que amam, sofrem, lidam com questões domésticas. Nesse sentido, essa humanização também é uma perspectiva de contraposição às estratégias do governo estadunidense de colar à imagem dos Panteras Negras a ideia de organização terrorista violenta. Hoover chegou a declará-los como a maior ameaça à segurança interna do país. Se a branquitude vilaniza os negros, o cinema negro pode (e deve) ser essa contra-narrativa.

Especificamente quando Hampton é preso por uma acusação ridícula (algo como o não pagamento de 70 dólares em sorvete), em uma das tentativas da Polícia de enfraquecê-lo e enfraquecer o Partido, ele passa todo o tempo sem receber visitas e sem ter notícias do mundo lá fora. Sua companheira está grávida, mas nem tem como contar sobre seu filho até o dia em que ele finalmente é solto. E é com este filho na barriga que ela se abre sobre uma questão crítica de sua situação: mesmo apoiando e participando do movimento, os riscos para ela agora são maiores, em vista da criança que está para nascer. O ativismo é necessário, mas também envolve conflitos internos. O corpo de Hampton pode se integrar totalmente à causa, mas e o dela? Desse modo, o filme constrói personagens com complexidades e nuances mais intimistas.

Judas e O Messias Negro (Judas and the Black Messiah, 2020), de Shaka King

E tais complexidades não estão apenas em um dos lados. Também a O’Neal, o personagem traidor (ou “rato”, como é dito no filme), não é negada a tridimensionalidade. Mesmo que seja muito doloroso assistir a esse homem negro agindo contra seus iguais (e contra si mesmo), colaborando para o que termina em morte de um líder dos Panteras e tantas outras pessoas, percebe-se suas dúvidas. Ele sofre uma manipulação inteligente da Polícia, mas à medida que se aproxima dos membros do Partido e os vê atuando pela comunidade, manejando armas, sim, mas em autodefesa, cresce nele um pesar, uma culpa. O’Neal parece se dividir cada vez mais entre a admiração pelo FBI como uma profissão respeitável e de status e a atuação dos militantes. Um grande mérito do roteiro e da excelente interpretação de Stanfield.

Diante da importância histórica do que conta, King utiliza de outras imagens já realizadas para compor sua narrativa. Parte de imagens de arquivo, com trechos da entrevista de O’Neal real para uma série documental chamada “Eyes on the Prize II: America at the Racial Crossroads 1965–1985”, veiculada originalmente no canal de TV PBS. Esta filmagem reforça sua ambiguidade, e a nós é revelado que, pouco tempo depois da produção do vídeo, ele suicidou-se. Também vemos trechos de documentários como de “Os Panteras Negras” (1968), da Agnès Varda, e, ao final, fotos do filho crescido de Fred Hampton ao lado da mãe, entre outras. Vale destacar, ainda, a trilha de sonoridades marcantes, que ora intensifica as tensões, ora a melancolia, além da música final belíssima “Fight for You”, de H.E.R., Dernst Emile II e Tiara Thomas.

“Judas e o Messias Negro” pode ser considerado material expressivo para as  discussões que envolvem o conceito de necropolítica. Este termo foi cunhado por Achille Mbembe, filósofo, historiador e intelectual do Camarões,  quando elaborou seu pensamento a respeito de nações que vivem um regime de segregação social e de um Estado que mantém meios de ditar quem pode viver e quem deve morrer. No filme, várias estratégias desse poder são evidenciadas, do sistema judiciário e de segurança pública aos mais sutis e perversos, como os manipuladores, capitalistas, e que plantam até mesmo o auto-ódio.  Mas, terminemos este texto com um pouco mais de esperança, citando o próprio Fred Hampton, tão certeiro: “Você pode matar um revolucionário, mas não pode matar uma revolução”. Seu legado continuará vivo. A luta continua.

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