"A Sombra de uma Dúvida" (Shadow of a Doubt, 1943) - Foto: Divulgação
"A Sombra de uma Dúvida" (Shadow of a Doubt, 1943) - Foto: Divulgação

“A Sombra de Uma Dúvida”: Trevas e incerteza no coração da América

O filme “A Sombra de Uma Dúvida” é, clara  e indubitavelmente, mais um exemplar irretocável na filmografia do diretor britânico Alfred Hitchcock (1899-1980). O cineasta, que a esta altura da carreira já estava se estabelecendo em Hollywood, constrói um filme soturno e carregado de um cínico ceticismo, focando no Mal que vai, literalmente, se esconder na aparente calmaria americana, apenas para contaminá-la e deixar nela sua marca.

Lançado oficialmente em 15 de janeiro de 1943 (há exatos 80 anos, portanto), e estrelando Teresa Wright e Joseph Cotten nos papéis principais homônimos (jovem Charlie e tio Charlie, respectivamente), o filme conta a história de um feminicida que mata suas vítimas por estrangulamento e, quando acossado pela polícia, vai se esconder na casa da irmã, em uma tradicional cidade da Califórnia. O Tio Charlie é adorado pela sobrinha Charlotte Newton, apelidada também de Charlie, mas, à medida que o enredo prossegue e a sobrinha descobre o que o tio procura esconder, a admiração vai se tornando repulsa e, sobretudo, medo.

Célebre por ser declaradamente o filme preferido do diretor dentre aqueles de sua trajetória, “A Sombra de Uma Dúvida” traz o princípio até então utilizado inúmeras vezes (mas nem por isso ultrapassado) por Hitchcock para gerar suspense no público. Desde o início, fica muito evidente que Charles Oakley não é a boa pessoa que procura demonstrar à vista da família. Sabemos, então, antes dos personagens (e este conhecimento pregresso é mais potente em relação à Jovem Charlie, dado o amor que ela nutre pelo tio recém-chegado) uma informação que modificaria sobremaneira o rumo da história. E o realizador, de posse deste domínio da construção do suspense, dilata ao máximo a expectativa da audiência em relação à descoberta.



Assim, desde a cena em que Charlie nota as inscrições no anel que recebeu de presente do tio, até o ápice da cena da biblioteca, a cada novo momento o roteiro do filme (assinado, entre outros, por Alma Reville, companheira e colaboradora de Hitchcock desde a Inglaterra) presenciamos o avançar de um processo paulatino da sobrinha descobrindo quem o tio realmente é.

A cena na biblioteca, a propósito, é uma aula de construção de suspense mesclada ao desenvolvimento dramático da personagem. A jovem Charlie chega, vê a biblioteca em vias de fechar. Sai, volta e implora à bibliotecária que a deixe entrar. Encaminha-se então até a seção de jornais, procura o que lhe interessa, acha-o e, quando encontra a reportagem que estava buscando, a câmera se demora em seu rosto antes de enquadrar o conteúdo. Todo este percurso pode parecer pouco objetivo, mas se insere justamente na dimensão rigorosamente controlada da narrativa hitchcockiana, que, embora concisa, manipula o tempo da história até as vias do esgarçamento.

E então, depois de expor ao público (de forma bastante didática) o conteúdo da matéria, a câmera se afasta cada vez mais de Charlie e a vemos finalmente sozinha, cercada por toda a extensão escura e vazia do centro da biblioteca. Sua sombra se projeta disforme no chão; neste momento, vemos, literal e concretamente, a sombra da dúvida crescer inexoravelmente, enquanto a antes inocente, agora ciente Charlie, caminha vagarosamente, ante o choque das informações que acaba de receber.

A interpretação de Teresa Wright é, aliás, uma das melhores dentre as atuações em obras hitchcockianas que já vi. Ela consegue transmitir, ao mesmo tempo, a graça e a idealização típicas da construção da personalidade feminina ao longo do cinema clássico hollywoodiano, mas também é ela quem se rende à realidade quando esta se impõe e tem as atitudes centrais que farão a ameaça que seu tio representa ser liquidada. É também a protagonista feminina quem descobre os crimes do assassino, colabora com a polícia (ainda que relutante e de forma incipiente) e sustenta o segredo sozinha, tendo uma curva dramática tão trágica quanto complexa.

Trajetória esta que é concretizada também, e principalmente, através de recursos formais. Para além da trilha sonora como complemento à ação dramática, ou dos ângulos e movimentos de câmera que são perfeitamente justificados pela construção do enredo ‒ em um claro sinal de conformidade à narrativa clássica ‒, o que mais tem potencial de chamar a atenção em “A Sombra de Uma Dúvida” é a iluminação.

Evidentemente desejando uma correspondência entre a visualidade e a temática da história, quase todo o filme se passa em ambientes noturnos, com iluminação lúgubre e, o mais importante, com sombras por todos os lados. E é nestas sombras que Hitchcock habilmente encapsula algumas simbologias que conversam com a condução da narrativa. A título de exemplo, temos os momentos em que as sombras formam linhas verticais por sobre o corpo do Tio Charlie (associando o personagem às grades de uma prisão e, por tabela, a uma conduta criminosa), ou ainda, quando sombras disformes são vistas passando pela jovem Charlie (indicando então a presença de um perigo justamente sem forma, ainda não identificado pela protagonista).

"A Sombra de uma Dúvida" (Shadow of a Doubt, 1943) - Foto: Divulgação

"A Sombra de uma Dúvida" (Shadow of a Doubt, 1943) - Foto: Divulgação
“A Sombra de uma Dúvida” (Shadow of a Doubt, 1943) – Foto: Divulgação

Este uso da iluminação é muito importante para a estética vista em tela e permite uma associação da obra aos filmes noir. Mas a principal característica que permite esta ligação estilística reside na curva dramática da personagem principal. Charlie começa a história como uma garota ingênua, sonhadora e que, acima de tudo, idolatrava o tio e nutria por ele uma adoração quase que incestuosa. E, ao final do longa, vemos a personagem de Teresa Wright muito mais distante da felicidade (embora ao lado de seu par romântico, em mais uma convenção do cinema clássico) e, visivelmente, melancólica. Soturna pela decepção. Por ter de guardar o obscuro segredo de seu tio por toda a vida. Assombrada por ter perdido a inocência.

“A Sombra de Uma Dúvida” não é, pessoalmente, meu Hitchcock favorito. Este lugar é ocupado pela obra-prima “Os Pássaros” (1963). Entretanto, é impossível ignorar que o ceticismo cínico que caracterizaria este e outros filmes do diretor já estava presente em peso no filme que era, afinal, o favorito do próprio Hitchcock. “A Sombra de Uma Dúvida” adquire concretude ao seu final no estrangulamento simbólico da jovem Charlie. Ainda que ela tenha conseguido se impor a ele, cinicamente o assassino estará sempre presente. O ceticismo está aí, neste final em que a sociedade toma vilões por heróis. Não há final feliz para Charlie. Seu tio será sempre uma sombra a lhe trespassar. ■

Nota:

A SOMBRA DE UMA DÚVIDA (Shadow of a Doubt, 1943, EUA). Direção: Alfred Hitchcock; Roteiro: Alma Reville, Sally Benson, Thornton Wilder (baseado em uma história original de Gordon McDonell); Produção: Jack H. Skirball; Fotografia: Joseph A. Valentine; Montagem: Milton Carruth; Música: Dimitri Tiomkin; Com: Teresa Wright, Joseph Cotten, Macdonald Carey, Henry Travers, Patricia Collinge; Estúdio: Skirball Productions; Distribuição: Universal Pictures; Duração: 1 h 48 min.

filme A Sombra de uma Dúvida

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