"M3GAN" (2022), de Gerard Johnstone - Universal Pictures/Divulgação
Universal Pictures/Divulgação

“M3GAN”: Entre a sátira humanoide e o horror tecnológico

“Uma boneca infantil começa a agir violentamente contra todos aqueles que tentam interferir na relação entre ela e a criança a quem foi dada como presente”. Modificados alguns detalhes, esta poderia facilmente ser a sinopse de uma série de filmes, a começar pelo icônico “Brinquedo Assassino” (1988), dirigido por Tom Holland. E não se engane: “M3GAN” (2023), coprodução entre Nova Zelândia e Estados Unidos realizada pelo neozelandês Gerard Johnstone, não tem pretensão alguma de ser original, e apresenta ao público um enredo inocentemente previsível. O filme, no entanto, ganha muitos pontos por conseguir envolver o espectador, pela irreverência e, principalmente, por trazer um comentário muito atual e pertinente sobre a relação entre seres humanos e tecnologia.

Roteirizado por Akela Cooper, a partir do argumento de James Wan, a dupla aqui repete a parceria que rendeu ao público o ótimo “Maligno”, no ano de 2021. Em “M3GAN”, acompanhamos a história de Gemma (Allison Williams), uma engenheira de robótica que trabalha em uma empresa de brinquedos e constrói a boneca realista que dá título ao filme. M3GAN (fisicamente interpretada por Amie Donald e dublada por Jenna Davis) é recebida com entusiasmo pelos altos funcionários da empresa, e dada de presente a Cady (Violet McGraw), sobrinha órfã de Gemma, para que a humanoide expanda seu leque de aprendizados. No entanto, o brinquedo começa a ganhar vida própria e a ameaçar qualquer pessoa que tente se colocar em meio à sua relação com a garota.

Quem for se aventurar pelas quase duas horas de “M3GAN” precisa estar ciente de um ponto muito importante: o filme não se leva nem um pouco a sério em inúmeras ocasiões. Seja em todos os personagens humanos, cujo raciocínio é de um amadorismo risível ‒ é uma decisão mais tola do que a outra ‒, seja na própria boneca, que lança seguidas frases de efeito (muito boas, por sinal!) e tem as ações menos óbvias em certos momentos do filme, como na performance impagável de um sucesso musical da última década transformado em cantiga de ninar. O diretor e os designers do brinquedo parecem querer deixar isso claro já na aparência e movimentação da boneca, propositalmente artificiais, embora sejam resultado da performance da atriz mirim combinada a animatrônicos, marionetes e efeitos visuais. É como se estivéssemos vendo um brinquedo da franquia “Toy Story”, recortado e interagindo com o mundo real.



Na realidade, o próprio filme sabe que sua história não para em pé. A mera ideia de uma boneca do tamanho de uma criança machucar alguém é ridicularizada a certa altura. Mas toda esta autoconsciência não é a única sustentação do filme. O principal fio condutor do longa, por mais esdrúxulo que ele possa ser, é um tema bastante preocupante e presente na vida contemporânea: a interação entre humanos e recursos tecnológicos, especialmente aqueles ligados à inteligência artificial. E “M3GAN” é muito mais bem-sucedido nisso, se comparado, por exemplo, ao remake “Brinquedo Assassino” (2019), dirigido por Lars Klevberg.

O filme se detém bastante neste tópico, mostrando como crianças e, principalmente, pais, mães e responsáveis em geral estão cada vez mais dependentes de itens como celular, tablet, videogame e brinquedos interativos. O roteiro também destaca como estas relações tendem a minar interações afetivas reais, entre humanos, e substituir discussões sobre temáticas complexas por uma solução paliativa, que apenas retarda e coloca em suspenso os possíveis (e naturais) embates que a convivência familiar e social gera.

Não há muitas sutilezas aqui, e, justiça seja feita, a relação entre humanidade e máquinas com consciência é explorada com profundidade pelo menos desde “2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968), de Stanley Kubrick. Entretanto, é surpreendente que o filme de Gerard Johnstone consiga capturar tão bem algumas falas e atitudes contemporâneas em um nível que tenha me feito lembrar vividamente, várias vezes, de situações envolvendo tecnologia que já experimentei ou presenciei em casa, com meus pais e irmãs menores.

"M3GAN" (2022), de Gerard Johnstone - Universal Pictures/Divulgação
Universal Pictures/Divulgação

Embora o filme seja dirigido com bastante competência, eu devo confessar, como fã de horror que sou, que senti falta de uma abordagem mais gráfica e direta da violência, mesmo entendendo que a exposição tenha sido atenuada para diminuir a classificação indicativa, e consequentemente aumentar o alcance de público da produção, cujas cenas e a carismática personagem-título já se tornaram virais nas redes sociais. Na outra ponta, me causaram certo incômodo as doses de humor  um tanto quanto deslocadas em algumas sequências mais tensas. Tendo a acreditar que, na batalha entre terror e comédia, o medo e a angústia sempre saem perdendo, e por vezes tive alguma dificuldade em sentir um temor real pelas personagens. O filme poderia, assim, ter distribuído melhor, como consegue em outros instantes, os tons de sátira e de absurdo. É difícil, por exemplo, temer por um personagem quando a criatura que deveria ser a ameaça começa a dançar desajeitadamente em um corredor durante uma perseguição.

“M3GAN” termina com um gancho para continuação, que certamente virá, dada a popularidade e os bons resultados de bilheteria do filme no país de origem e no mercado internacional até o momento. Ainda que não tente inovar em termos de trama, o longa de Gerard Johnstone consegue ser divertido, descompromissado e, sobretudo, chamar a atenção para uma questão urgente do nosso tempo. Continuo preferindo o caráter barroco e surpreendente de “Maligno”. Ainda assim, que alívio é perceber, uma vez mais, o potencial humano dos realizadores que se aventuram pelo cinema de horror. Que M3GAN, suas emoções robóticas e ideias artificiais sigam no plano da ficção. ■

Nota:

M3GAN (2022, EUA). Direção: Gerard Johnstone; Roteiro: Akela Cooper; Produção: Jason Blum, James Wan; Fotografia: Peter McCaffrey; Montagem: Jeff McEvoy; Música: Anthony Willis; Com: Allison Williams, Jenna Davis, Violet McGraw; Estúdio: Blumhouse Productions, Atomic Monster Productions, Divide/Conquer; Distribuição: Universal Pictures; Duração: 1 h 42 min.

filme M3GAN

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