"Oito e Meio" (Otto e mezzo, 1963), de Federico Fellini - Foto: Janus Films/Divulgação
Foto: Janus Films/Divulgação

“Oito e Meio”: O diretor está nu

Se eu tivesse que selecionar apenas três das grandes contribuições italianas para o cinema, minhas escolhas seriam as seguintes: o neorrealismo, os filmes gialli e as obras de Federico Fellini. O fato de o cineasta ser uma única pessoa rivalizando com todo um movimento cinematográfico e um subgênero do horror, ambos imensamente profícuos e importantes, só prova o quão alto o cinema de Fellini está posicionado em minha cinefilia. Já era assim há bastante tempo e a experiência de ver e rever “Oito e Meio” (1963) apenas consolidou minha paixão pelo universo felliniano, ao mesmo tempo sentimental e cerebral, e tão pessoal quanto expansivo.

Após 60 anos da estreia de “Oito e Meio” e 30 anos da morte de Fellini, o filme segue sendo um monumento entre as maiores obras-primas da História do Cinema. É desafiador escrever algo sobre um longa que já esteve sob escrutínio dos/as mais prestigiados críticos/as e artistas, e mesmo em sua época já foi aclamada. A produção ganhou o Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira em 1963 ‒ Fellini já havia ganhado o prêmio duas vezes, em 1957 e 1958, respectivamente por “A Estrada da Vida” (1954) e “Noites de Cabíria” (1957), e ainda ganharia uma quarta vez, em 1975, pelo autobiográfico “Amarcord” (1973) ‒, e tem marcado presença quase ininterrupta na lista de Maiores Filmes de Todos os Tempos da prestigiada revista britânica Sight & Sound.

Mas, a despeito do longa ser considerado um exemplo primoroso do chamado “cinema de arte” (termo do qual discordo, mas que existe e ainda é usado), “Oito e Meio” é extremamente claro naquilo que quer comunicar ao espectador. Já é célebre o paralelo entre o filme e a dificuldade de seu realizador em encontrar um projeto à altura do anteriormente louvado “A Doce Vida” (1960). Trata-se então da história de um diretor de cinema, Guido Anselmi (Marcello Mastroianni), que enfrenta um bloqueio de inspiração artística em meio à produção de seu próximo trabalho, uma ficção científica com intensos elementos pessoais e autobiográficos. À medida que o tempo passa e a pressão em torno do novo projeto aumenta, o protagonista precisa lidar com produtores, atrizes, agentes, profissionais envolvidos no filme, as diversas mulheres que povoam sua vida, amigos, jornalistas e um crítico de cinema chamado por ele para avaliar o roteiro do longa, além das recorrentes lembranças/idealizações que se confundem cada vez mais com seu conturbado momento criativo.



A prova de que a obra consegue ser complexa sem ser complicada está no brilhante uso da metalinguagem. “Oito e Meio” combina um grau espantoso de reflexividade com uma sinceridade igualmente tocante. Em determinado instante, a personagem Gloria Morin (Barbara Steele, que protagoniza a icônica cena da dança possivelmente referenciada em “Pulp Fiction”), respondendo a uma pergunta, diz que o tema de sua tese do curso de filosofia é “A solidão do homem moderno no teatro contemporâneo”. Troquem a palavra “teatro” por “cinema”, leitoras e leitores, e vocês terão a primeira chave para compreender a jornada de Guido Anselmi. Porém, é o próprio Guido que, na absolutamente icônica cena do set de filmagem futurista ‒ poucas vezes vi cenas com uma fotografia tão mágica, o que contribui muito para a atmosfera cósmica que define o momento ‒, explicita seu desejo, e, por consequência, a profissão de fé de Fellini: “Eu queria fazer um filme honesto, sem nenhuma mentira”.

E talvez seja esta a principal genialidade do cineasta. [Digo “talvez”, pois “Oito e Meio” é daqueles filmes que apresentam tantos elementos técnicos e narrativos dignos de nota e uma quantidade tão grande de cenas deslumbrantes que se torna difícil até mesmo escolher o maior triunfo da produção.] Ora, Rainer Werner Fassbinder e Brian De Palma já diziam que “O cinema é a mentira 24 quadros por segundo”. E o próprio Fellini sabia disso. É dele a frase “Cinema-verdade? Prefiro o cinema-mentira. A mentira é sempre mais interessante do que a verdade”. Mas, embora o co-autor do roteiro (junto a Tullio Pinelli, Ennio Flaiano e Brunello Rondi) adicione esta boa dose de ironia à fala de Mastroianni (ou seria Guido, ou seria Fellini?), a primeira parte da frase é seguida à risca pelo autor. “Oito e Meio” começa fingindo cinismo, mas acaba por revelar uma obra cuja honestidade é total. Joe Dante o chama, muito apropriadamente, de “um confessionário cintilante”.

"Oito e Meio" (Otto e mezzo, 1963), de Federico Fellini - Foto: Janus Films/Divulgação
“Oito e Meio” (Otto e mezzo, 1963), de Federico Fellini – Foto: Janus Films/Divulgação

Parafraseando Andersen, poderia dizer que o diretor está nu. Fellini desnuda a si mesmo em frente ao público, revelando suas angústias, medos, fraquezas, falhas, vontades mais questionáveis e politicamente incorretas em imagens ora bizarras, quando não violentas, mas no mais das vezes  engraçadíssimas. Não esqueço, por exemplo, da insana cena da coletiva de imprensa, já no final do filme, quando uma jornalista se vira para o extra-campo e diz, em tom de histeria satisfeita, referindo-se ao transtornado Guido Anselmi: “He is lost! He has nothing to say!” Igualmente hilariante é o momento em que, durante uma fantasia/sonho/pesadelo de Guido ‒ no qual ele se imagina como o senhor de um harém formado por todas as mulheres de sua vida, na casa de infância ‒, sua esposa Luísa (Anouk Aimée) se dirige diretamente ao público para anunciar a chegada do marido/diretor, em estado de êxtase: “Ele é um querido!”.

E chegamos então a ela, para mim a presença feminina mais magnética do filme. Embora Claudia Cardinale também esteja esplendorosa como Claudia, a irreal “estrela perfeita”, e Sandra Milo espelhe com Mastroianni sua própria relação de amante com Fellini, ouso dizer que é Anouk Aimée quem dá vida à personagem mais densa e cujo envolvimento problemático com Guido andará em paralelo estreito (e metafórico) com o processo também errático de realização do filme dentro do filme. Aimée tem os momentos mais intensos, as falas mais melodramáticas (no melhor dos sentidos) e transita brilhantemente entre a frieza machucada da esposa traída e a domesticidade idealizada nos delírios de Guido. E, embora eu não seja um fã de Mastroianni, as discussões entre ele e Anouk Aimée carregam uma potência tão significativa que trazem ao filmes seus momentos mais tensos e, por vezes, surpreendentemente melancólicos.

Rivalizando com Aimée, outra presença me deixou completamente hipnotizado: a câmera, mérito compartilhado entre Fellini e seu diretor de fotografia, Gianni Di Venanzo, que colaborou também com outro gigante, Antonioni. Ari Aster ressaltou esta qualidade, ao colocar o filme em sua seleção da Sight & Sound: “A câmera de Fellini ‒ sempre dançando delirantemente, sempre inquieta para se superar ‒ nunca foi tão fluida, ágil ou atenta, e sua direção de atores nunca foi tão acrobática”. E toda essa movimentação não é gratuita. Seja executando trajetórias em torno dos atores e espaços, ou aproximando subitamente dos rostos dos personagens (às vezes por meio do zoom-in, que não é um movimento de câmera, mas acaba funcionando de forma parecida), a câmera de Fellini funciona como um guia para o peculiar universo que ora está fora, circundando, ora está dentro da mente atribulada de Guido Anselmi, seja em delírios, ou em rememorações.

"Oito e Meio" (Otto e mezzo, 1963), de Federico Fellini - Foto: Janus Films/Divulgação
“Oito e Meio” (Otto e mezzo, 1963), de Federico Fellini – Foto: Janus Films/Divulgação

Fosse um filme comum, os êxitos seriam interrompidos aqui para algum comentário mais crítico ressaltando uma ou outra falta do longa. Mas obras-primas como “Oito e Meio” só são obras-primas por colecionarem um sem-número de triunfos. Pessoalmente, e deixo o melhor para o final, aquele que mais me fascinou no filme de Fellini foi a iluminação, digna de tantos elogios quanto o mais exuberante technicolor. Os rostos resplandecentes, as sombras abundantes, os feixes de luz que dão peso ao ar, tornando os ambientes etéreos quase em uma terra habitada por fantasmas, o contraste em tons de preto-e-branco cuidadosamente desenhados e realçados também no figurino, de modo a acentuar pertencimentos e dissociações entre personagens e cenários… Procurei palavras para descrevê-la, mas melhor deixar para quem entende muito mais do assunto, e admira as luzes e contrastes do filme há muito mais décadas do que eu: Martin Scorsese traz então a síntese definitiva, ao dizer que “cada imagem brilha com uma pérola”.

Aqui faço coro também ao grande Roger Ebert: “Fellini é um mágico que discute, revela, explica e desconstrói seus truques, sem deixar de nos enganar com eles. Ele afirma não saber o que quer ou como alcançá-lo, e o filme prova que ele sabe exatamente e se alegra com seu conhecimento”. Embora parta da crise do próprio Fellini acerca de qual filme fazer, “Oito e Meio” é um trabalho de admirável rigor estético, tanto em termos visuais, quanto no trabalho de som ‒ vale ressaltar a trilha sonora grandiloquente, divertida e sensível de Nino Rota, e o design de som altamente atmosférico, que lembra o eletrônico, na cena do cenário de ficção científica. Claro, a nível de roteiro, são célebres as recordações de Cardinale contando os diversos momentos em que suas falas não passavam de improviso. Mas este certamente não seria o grande filme que é sem uma dose de imprevisibilidade e confusão.

Porém, engana-se quem pensa que, por costumar incentivar os atores a improvisar, Fellini não tinha em mãos um roteiro com coerência temática e narrativa. Pelo contrário. Basta vermos como o filme se fecha (ou melhor, se abre) ao final, totalmente em sintonia com o que havia sido estabelecido antes. Se a trama começa com o diretor preso, sufocado, pressionado, o tour de force de Guido Anselmi termina com a libertação, primeiro em palavras, nos monólogos do crítico e do protagonista, e depois através das imagens. As silhuetas de Bergman dançavam para a Morte em “O Sétimo Selo” (1957), mas os corpos perfeitamente iluminados de Fellini celebram a vida ao fim de toda a peregrinação que, afinal de contas, acabou por dar à luz um filme. O saudoso Rubens Ewald Filho nos conta o seguinte: “A sequência final no circo, Fellini imaginou de última hora e por isso nem todo o elenco pode estar presente. Mas reflete muito sua visão de mundo. A vida é um circo, diz ele, e o único jeito de se continuar vivendo é nós todos nos darmos as mãos, nos aceitarmos e sairmos dançando pelo picadeiro”. O simbolismo reverente de nos unirmos àqueles que nos ajudaram a construir nossa trajetória e seguir pela estrada da vida, sempre comparada a um circo, motivo recorrente na filmografia felliniana.

"Oito e Meio" (Otto e mezzo, 1963), de Federico Fellini - Foto: Janus Films/Divulgação
“Oito e Meio” (Otto e mezzo, 1963), de Federico Fellini – Foto: Janus Films/Divulgação

Pauline Kael polemizou ao dizer que o filme “falha ao não alcançar a imaginação” (entre outros argumentos, em sua duríssima crítica). Judith Crist considerou o longa “frio”. São juízos dos quais eu discordo agora, mas que não tomo como blasfêmias. Eu mesmo, a princípio, esperava um outro tipo de surrealismo, à la Buñuel, lá pela primeira hora do filme. O próprio Fellini se mostra consciente a todo momento de que é arriscada a empreitada em que se envolveu e para a qual convidou também o público a se enredar. Não à toa, uma das visões de Guido consiste na fabulação mordaz de enforcar o crítico que passa o filme lhe censurando. Impossível exigir mais sinceridade de um cineasta. Para fazer jus a um filme cuja honestidade me tocou profundamente, procurei ser também honesto.  “Perdoe tantas citações, mas nós, críticos, fazemos o que podemos”. ■

filme oito e meio fellini

Nota:

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OITO E MEIO (Otto e mezzo, 1963, Itália, França). Direção: Federico Fellini; Roteiro: Federico Fellini, Tullio Pinelli, Ennio Flaiano, Brunello Rondi; Produção: Angelo Rizzoli; Fotografia: Gianni Di Venanzo; Montagem: Leo Catozzo; Música: Nino Rota; Com: Marcello Mastroianni, Claudia Cardinale, Anouk Aimée, Sandra Milo, Rossella Falk, Barbara Steele, Guido Alberti; Estúdio: Cineriz, Francinex; Distribuição: Cineriz (Itália); Duração: 2 h 18 min.

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