Ratatouille

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O tempo está fechado. Ouvimos apenas o som do vento e da chuva. A câmera está entre os galhos e folhas de uma árvore e desce devagar, aproximando-se lentamente de uma casa campestre típica do interior da França. Enquanto a câmera ainda está a uma certa distância do chão e da casa, ouvimos o barulho de um estouro vindo lá de dentro e vemos o clarão de um disparo de arma pela janela. Segue um grito de desespero.

Espere. O que a descrição de uma cena própria de um thriller policial está fazendo em um texto sobre “Ratatouille”? Este é um filme infantil! Ou não é? Pode-se argumentar sobre essa questão aqui, assim como em todas as produções anteriores da Pixar, o estúdio de animação que, desde “Toy Story”, vem provando ser o principal nicho criativo de Hollywood. Afinal, se você recapitular mentalmente os grandes filmes de aventura e fantasia da última década, feitos em animação ou live-action, verá que a maioria (se não todos) surgiu de algum livro, revista em quadrinhos e afins. Os poucos (se não únicos) que podem bater no peito e dizer que partiram de um conceito original são aqueles que saíram das mentes e computadores instalados em Emeryville.



Pois “Ratatouille” é o mais novo clássico da Pixar. Sem ela, a Disney já teria fracassado. E sem Brad Bird, a Pixar simplesmente não seria a mesma. Não dá mais para imaginar a história do estúdio sem este cineasta, já que ele é o responsável por seus dois melhores filmes até agora, o outro sendo “Os Incríveis”.

A cena descrita na abertura do texto é também a que abre o longa. Logo de cara, ela mostra como Bird sabe manejar a espectativa de seu público, que, como ele bem sabe, deixou de ser formado apenas por crianças há anos. A cena termina com um freeze-frame do protagonista, o rato Remy, saltando da janela para escapar da morte. O personagem se apresenta à platéia e, então, conhecemos a vida que ele leva com a família no sótão da casa, além de descobrirmos que ele possui um gosto diferenciado por comida. Essa seqüência introdutória dura alguns bons minutos, suficientes para Remy bolar um plano com seu irmão, Emile, para criar um novo sabor a partir da combinação de alguns ingredientes. E, para obtê-los, ele precisa assaltar a cozinha da senhora que mora naquela casa. É claro que o plano dá errado, a velhinha pega os ratos no flagra e, finalmente, vemos o que foi aquele disparo na cena inicial. Agora, responda: em quantas animações você vê um diretor/roteirista manipular a narrativa dessa forma?

Neste início de filme, Bird também brinca com a noção de que ratos são criaturas nojentas, mostrando-os na sombra e com olhos vermelhos e malignos, como no estereótipo mais conhecido. Este, aliás, era um temor que a própria Disney possuía, e que acabou rendendo ao seu departamento de marketing um belo de um pepino, já que o estúdio não iria distribuir o filme inicialmente (o contrato com a Pixar havia expirado no lançamento de “Carros”) e simplesmente não soube como torná-lo atrativo para o público. Afinal, um rato em uma cozinha geralmente é uma cena que provoca arrepios em qualquer pessoa que aprecie um mínimo de higiene.

Mas esta é a Pixar: um lugar onde noções que habitam os sonhos (brinquedos que ganham vida quando não estamos por perto) e pesadelos (bicho-papão dentro do armário) do público de qualquer idade (os adultos já foram crianças, ora essa!) encontram um caminho para se tornarem histórias de apelo universal, com as quais podemos nos identificar. Portanto, não poderia ser diferente com “Ratatouille”.

Assim que Remy foge dos tiros, ele se perde da família e vai parar em Paris, a capital mundial da finesse gastronômica, onde também fica o famoso restaurante do chef Auguste Gusteau, a quem Remy tem como ídolo. O renomado cozinheiro, no entanto, faleceu há pouco tempo. Mesmo assim, ele aparece para o roedor como uma espécie de Grilo Falante. Assumindo diversas formas, de um pequeno fantasma até a sua gigantesca reprodução na fachada do restaurante, Gusteau é o responsável por guiar Remy em sua aventura e ajudá-lo a se comunicar com o desajeitado Linguini, um ajudante de cozinha recém-contratado por indicação de uma amiga de Gusteau. Porém, o inofensivo jovem acaba por representar uma ameaça para Skinner, o cozinheiro que assumiu o controle do restaurante. Ele descobre que Linguini pode ser filho de Gusteau e, por conseqüência, herdeiro do estabelecimento.

Esta história do “filho perdido” parece ser um pouco despropositada quando surge. O mesmo acontece com a paranóia de Skinner com suas “visões” de Remy, cuja relação com a família no esgoto também parece se desenvolver um pouco distante de todo o resto do enredo. Mas tudo isso se resolve, e com maestria. Em certo momento, você pode achar que o filme está se desviando do foco, mas, pouco depois, verá que todas as histórias convergem para a narrativa principal em um clímax muito, muito bom. É incrível como Brad Bird consegue lidar com todas as subtramas, que incluem ainda um romance entre Linguini e a pertinaz Colette.

Bird é um ótimo escritor e outra prova são os personagens coadjuvantes, que estão lá estritamente para servirem à história. Não existe um personagem sequer que sirva como alívio cômico apenas em razão de ser um alívio cômico (um problema que afeta o Burro e o Gato de Botas em “Shrek”, por exemplo). Eles funcionam para a construção da narrativa. Os melhores exemplos são os parentes e amigos ratos de Remy. Nenhum deles é super ou subutilizado. Nada é gratuito no roteiro, nem mesmo o título do filme, que é também o nome de um prato francês simples e tradicional que acaba tendo uma função extraordinária na história.

Assim como Bird é detalhista no script (o modo como Remy anda em duas patas se torna algo que ele precisa esconder do pai; além disso, o filme se preocupa em mostrar porque os ratos falam entre si, mas os humanos não os compreendem), os animadores da Pixar também são minuciosos. A técnica do estúdio atinge um nível tão sofisticado de qualidade, que há cenas em que os cenários e os detalhes simplesmente não parecem ter sido feitos por computador: são extremamente realistas. Veja os bigodes e os pelos dos ratos e note a evolução em relação ao Sully de “Monstros S.A.”. E o que faz tudo parecer ainda mais real é a iluminação. É incrível como a luz incide nos objetos e nos personagens e torna tudo mais vivo.

Esse realismo também está nos personagens humanos, mas não é um realismo absoluto. Assim como nos outros filmes da Pixar, eles possuem traços caricaturais, com narizes maiores que o normal, papadas gigantescas, queixos pontudos etc. Porém, o toque fundamental para que eles realmente pareçam humanos como nós reside em seus gestos e expressões. A Pixar entendeu que não é o fotorrealismo que conta: seus humanos parecem reais porque suas emoções são reais. Basta assistir à cena em que determinado personagem consegue conter uma explosão de raiva ao se sentir traído: ele morde os lábios, seus olhos se enchem de lágrimas e sua mão pára no ar, trêmula, antes de completar o movimento brusco que resultaria em um belo tapa na cara. É raro ver um momento tão expressivo como este em um filme de animação.

Talvez o que “Ratatouille” possua de mais absurdo é a idéia de Remy controlar Linguini como se ele fosse uma marionete. É absurdo, sim, mas o filme é uma fábula! Logo, é permitido. Esse aspecto da história começou a me incomodar um pouco, mas logo me dei conta de que isso só ocorreu porque eu estava tão envolvido com o filme como adulto, que me esqueci que se tratava de um conto de fadas.

Este momento em que a gente “sai” do filme é mérito de Bird, um cineasta consciente do seu público e que tem um profundo respeito por ele, não importa a idade. Veja, por exemplo, como ele não tem medo de assustar as crianças. Além dos tiros naquela fantástica seqüência inicial, o diretor constantemente coloca a noção de perigo à prova para o público infantil: o raio que “frita” os ratinhos no telhado; a travessia de Remy pela cozinha do restaurante, em meio a facas afiadas e pés que podem esmagá-lo; e uma cena, de certo modo até chocante, que mostra vários ratos mortos em uma loja de pesticidas (aliás, creio que é a primeira vez que vejo animais mortos em um filme da Disney).

Uma das cenas que fez eu me dar conta de que essa história só poderia ser contada através de animação é aquela em que a câmera segue Remy dentro da camisa de Linguini. Em vários outros momentos, Bird também passa por lugares que seriam impossíveis em live-action. Mas o que realmente o diferencia como diretor de animação é que ele é, na verdade, um diretor de cinema. Bird conhece a cartilha de cineasta: podemos encontrar planos-seqüências, travellings e plongées ao longo do filme. Assim como em “Os Incríveis”, ele mais uma vez mostra que dirige animação como se dirigisse um filme em um set.

“Ratatouille” é uma fábula formidável sobre ser capaz de superar obstáculos quando o mundo parece não acreditar em você. A frase do crítico Anton Ego é perfeita: “Nem todo mundo pode se tornar um verdadeiro artista, mas um verdadeiro artista pode vir de qualquer lugar.” Quando se tem o dom, não importa de onde você veio: se é rico, pobre, alto, baixo, gordo, magro, homem, mulher, diretor de animação, diretor de live-action… Ou mesmo, um rato. ■

nota: 10/10 — veja no cinema e compre o DVD

Ratatouille (2007, EUA), dir.: Brad Bird – em cartaz nos cinemas